Comecei meus estudos universitários no início dos anos 1970, na Fefierj (Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado do Rio de Janeiro), hoje UniRio. No corpo docente, professores como Hélio Sena e Sílvio Mehry, ambos com sólida formação pelo Conservatório de Moscou, e Marlene França, ex-aluna de Ginastera. No andar de cima, as Artes Cênicas, laboratório do melhor teatro da época: Arrabal, Ionesco, Brecht.
Tempos duros como os cabos das baionetas, na entrada do prédio – de que falarei adiante -, era frequente a parada de uma “Joaninha” (fusca da PM com uma só luz giroflex, coitado do simpático besourinho rubro-negro). Volta e meia, revista de alunos e professores, preferências recaindo sobre livros de capa vermelha. Nada que coadunasse com o espírito que mantínhamos: liberdade de estudo e criação. Em uma aula de harmonia ao piano, lembro-me de ter apresentado um exercício para a professora Marlene França em que usei um coral de Bach. Movi vozes meio tom para cima e para baixo, inventei acidentes e por aí vai. Uma loucura dissonante, mas ela, após tocá-lo no piano, cenho franzido, ao invés de me dar um pito levantou-se com um enorme sorriso – de uma compositora contemporânea o que mais esperar?
De volta ao prédio: o nome Fefierj foi dado oficialmente após a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, em 1975. Em 1979 passou a chamar-se UniRio, parte da Uferj (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Um prédio dos anos 1930 com apenas três andares que carregava uma sina, um carma: fora a sede da proscrita UNE (União Nacional dos Estudantes)!
Faço um corte à maneira dos filmes “nouvelle vague” tão ao nosso gosto, à época, para falar da UNE, e depois retornar à Fefiej. Fundada em 1937, teve participação em todos os movimentos sociais do Brasil. Na presidência, entre 60 nomes, José Serra, cujo mandato foi encerrado com o golpe de 1964, Luís Travassos, eleito em 1968 e líder estudantil de peso, e Aldo Rebelo, político que foi ministro em vários governos. O prédio, número 132 da Praia do Flamengo e símbolo da resistência, foi invadido e metralhado no dia do golpe, 1º de abril de 1964, e logo após incendiado. Enquanto isso, soldados e milícias radicais tentavam queimar o prédio da Faculdade de Direito com os estudantes em seu interior, mas foram impedidos pelo heroico capitão Ivan Proença, que arriscou sua vida entrando no imóvel em meio a tiros e bombas para salvar os estudantes, obrigando seus subordinados à imediata suspensão da iminente carnificina.
Durante o período da ilegalidade determinada pela lei “Suplicy de Lacerda” (1964-79), a representação estudantil foi pulverizada em diretórios acadêmicos bem vigiados nas universidades. Mas a UNE continuou clandestina, e, por isso mesmo, cada vez mais contaminada por grupos radicais. Um desastre: o 30º Congresso com 5.000 estudantes em Ibiúna, 1968, foi desbaratado pelo número extravagante de pãezinhos e litros de leite encomendados na cidade do interior paulista. Organização sem planejamento, todos foram presos, inclusive os líderes Jean-Marc, José Dirceu, Vladimir Palmeira e Travassos. Depois, assume então a presidência Jean-Marc, que, levado à prisão, deu lugar a Honestino Guimarães, em 1973. Igualmente preso, como era frequente, declarado “desaparecido” (leia-se: morto). Naquele tempo, eram todos estudantes idealistas, rebeldes como qualquer jovem saudável, mas aos poucos, muitos, foragidos, foram seduzidos pela luta armada do VAR, VPR, MR-8 e outros.
Depois do “corte à francesa” para falar da UNE, à Fefierj. O diretor-interventor era o general Jayme Ribeiro da Graça, egresso do SNI (Serviço Nacional de Informações, órgão da ditadura). Agentes e alcaguetes infiltrados nas salas de aulas no Rio eram os mais calados, discretos e misteriosos, e não faziam anotações. Com o interventor eu tive problemas de ordem musical, a despeito da ignorância dele em artes – achava “inferiores” os instrumentos e a música indígena. Cheguei a ser ameaçado de “virar flauta”, após discordar dele sobre a “inferioridade daqueles instrumentos indígenas feitos com ossos”.
Quarente e cinco anos depois, rebobinam o filme, às avessas: semana passada (O Globo, 5/09/19), ressurgiu travestido e com força o mesmo preconceito. Na conceituada UFRJ, estudantes de certa seita religiosa autodenominada Igreja recusaram-se a cantar as “Toadas de Xangô” (“orixá das artes”), do petropolitano Guerra-Peixe. Um dos alunos disse “e se eu ‘receber’ (obs.: ‘incorporar’) alguma entidade?” A professora Andrea Adour tentou explicar, mas os novos radicais, que hoje se multiplicam como “gremlins”, não compreenderam. Villa-Lobos também compôs sobre crenças indígenas e religiões afro (“Xangô”), tal como Francisco Mignone (“Babaloxá”), meu amigo Ernani Aguiar (“Cantos Sacros para Orixás”), José Siqueira (“Oratório Candomblé”) e Camargo Guarnieri (“Macumba para Pai Zuzê”, com letra do Drummond). Na MPB, Caymmi (“Oração de Mãe Menininha”), Sérgio Ricardo (“mandinga da gente continua”), Caetano (“Xangô manda chamar Obatalá Guia”), Edu Lobo (“ê meu irmão me traz Yemanjá pra mim”), Vinicius (“Canto de Ossanha”). Um coro universitário que não canta as raízes de seu povo leva a música para longe de sua nação!
A direção da Escola de Música da UFRJ é aberta, mas a história é ingrata: alunos inverteram seu papel, encarnando a intolerância do antigo interventor da Fefierj. Sinal dos tempos, um retrocesso com troca de papeis, e farta matéria para cientistas sociais!