Nas últimas décadas do século 19, com o enriquecimento das classes privilegiadas, o crescimento da metrópole e a importação de costumes e modismos europeus, São Paulo viu surgirem diversas casas de espetáculos. Algumas delas eram bastante pequenas, dedicadas apenas a saraus musicais onde as elites dos chamados barões, forjadas na riqueza trazida pelo ciclo do café, poderiam fruir da melhor música. Foram construídos o Teatro Minerva (1873), onde funcionou o Teatro Apolo, na rua Dom José de Barros, mesmo local onde depois seria construído o Teatro Santana. Isso, além do Teatro Provisório Paulistano, na rua Boa Vista, depois desapropriado para a construção do viaduto que levou o mesmo nome.
Foram erguidos o Ginásio Paulistano (1881) e, logo a seguir, o Teatro das Variedades Paulistanas, além do Coliseu Paulista, na rua Ipiranga. Prédios menores, às vezes construções simples com telhados de zinco, abriam suas portas para a fina flor paulistana, a exemplo do Polytheama, edificação precária na avenida São João e herdeira da tradição do São José, e o Teatro Eldorado, de 1900. Seguiram-se o Teatro Santana, na 24 de Maio, e finalmente o Novo São José. No final do século, a cidade passou a ser ligada por uma ferrovia para passageiros à Capital Federal, Rio de Janeiro, provocando maior interação entre as duas metrópoles e profundas modificações na vida musical da sociedade. Companhias líricas e de teatro nacionais e internacionais passaram a incluir o São José em suas turnês, dotando-o de relevante papel no cenário artístico brasileiro.
A partir dessa fase, SP teve um período de grande efervescência musical. Alexandre Levy (1864-1892), chegado da Europa, onde fora estudar, residiu em um casarão na rua Vergueiro (que foi sede, por mim inaugurada em 1992 e até 2012, da Escola Municipal de Música). Parte do terreno da frente do imóvel foi desapropriada para dar passagem à atual avenida 23 de Maio. Levy fundou o Club Haydn, e Luigi Chiaffarelli (1856-1923), que foi professor de estrelas como Guiomar Novaes e Souza Lima, o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo (1904), “para evitar que a classe musical desaparecesse”.
Graças ao vereador e dramaturgo Gomes Cardim, um projeto de lei para a construção do Theatro Municipal foi aprovado em 1896, mas as obras só tiveram início em 1903. A edificação, suntuosíssima – “estandarte glorioso da cidade” -, constitui-se de 3.609 m² distribuídos por sete pavimentos, e consumiu oito anos de trabalho. Cristais da Boêmia, tapeçarias de Milão, mármore carrara, estátuas e móveis alemães, louças de banheiro inglesas, pianos Pleyel e a decoração do frontispício do palco e plateia folheada a ouro, tudo para reproduzir o sedutor luxo europeu (a saudosa professora da Escola Municipal Rosa Corvino mostrou-me uma dessas preciosas folhas com homenagem ao pai dela, mestre de obras da construção).
Por erros na funcionalidade do Theatro, músicos não soavam em uníssono com o coro da elite: o fosso, pequeno, não comportava uma orquestra de ópera inteira, e só seria reformado em 1941, na gestão do prefeito engenheiro Armando de Arruda Pereira. Consta nos registros municipais que durante a récita de inauguração boa parte da orquestra, por falta de espaço, passeava pela cidade ou se embriagava nos bares.
Em 1911, o engenheiro Ramos de Azevedo, que hoje dá nome à praça onde foi erigido o prédio, depois do trabalho intenso desenvolvido com os irmãos arquitetos Domiziano e Claudio Rossi (também cenógrafo e profundo conhecedor das melhores casas de espetáculos da Europa) entrega à cidade – louros políticos ao prefeito Raimundo Duprat -, uma obra típica do ecletismo paulistano da época, camuflado espírito barroco com moldes no clássico greco-romano e no “seicento” italiano. Há clara semelhança com o Opéra de Paris e um olho no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, inaugurado dois anos antes.
Para a estreia em grande gala, marcada para 11 de setembro de 1911, o maestro Edoardo Vitale havia preparado, à frente de uma orquestra de 70 músicos, 56 coralistas e 16 bailarinos, a ópera “Hamlet” (1868), de Ambroise Thomas, para ser encenada com a companhia do célebre barítono italiano Titta Ruffo. Foi então que surgiu o primeiro imbróglio artístico-político: pressões enormes obrigaram a inclusão, na abertura do espetáculo, da protofonia (abertura) de “Il Guarany”, de Carlos Gomes, que, por atropelo, nem constou nos créditos do cartaz de divulgação. Autoridades e políticos acharam uma humilhação inaugurar aquela grande casa de ópera sem incluir o grande compositor brasileiro no programa, às favas se nada tivesse a ver com a ópera francesa a ser encenada, com sua própria abertura.
Para agravar, a estreia foi adiada para o dia 12, já que por descuido os cenários simplesmente não chegaram a tempo. Essa primeira crise já anunciava a relação conflituosa – e às vezes incestuosa – entre a música do Theatro e a administração pública. Mas ninguém pôde negar o sucesso da concentração de 20 mil pessoas no Anhangabaú e um talvez inédito engarrafamento no entorno – a casta motorizada estava presente à inauguração. Segundo Mário de Andrade, que veio a ser diretor municipal de cultura (1935), o Municipal era “um lugar onde as madames ficam chacoalhando suas joias e os maridos fumando charutos e falando frivolidades nos corredores”. (Continua);
(Texto extraído de um projeto apresentado à USP em 1998 para pesquisa trienal. O material não foi usado e é inédito).