Releio este primeiro verso do poema do Olavo Bilac, só que pensando “estrelas” no sentido de músicos. No último artigo, falei sobre o Zerró Santos, talento nato do contrabaixo e líder da big band que leva seu nome, em SP. Daí a outro contrabaixista foi um pequeno salto: o cubano Israel López Valdés, o “Cachao” (1918-2008), que completaria cem anos em março. Vindo de uma família de 35 contrabaixistas, Cachao foi multi-instrumentista, compositor, um dos criadores do mambo – e da “descarga”, uma “jam-session”, em que os músicos tocam improvisadamente, alternando-se nos solos. Exilado nos EUA em meados de 1960, fez algum sucesso mas terminou esquecido. Ia do clássico à “salsa”, e, quando à frente de sua banda, tocava ao mesmo tempo em que regia com movimentos do rosto, a boca e até – marca registrada dele – com as sobrancelhas!
Espaço para curiosidade: existe uma rixa bicentenária entre os contrabaixistas que adotam as escolas de arco “alemão” (ou “à Dragonetti”), surgida do antigo violone, e os adeptos da chamada “francesa”, semelhante à do violoncelo. A disputa é tão aguerrida que, em alguns países, os que empregam uma das escolas não entram na seara alheia. Com a depuração da técnica, ao ouvir uma gravação dos grandes solistas de uma ou outra vertente torna-se difícil distingui-las. E é claro que não poderiam faltar anedotas…
(Conta a estória que o dono de um barzinho, só de olho, seria capaz de dizer o QI do freguês. Certa vez, entrou um sujeito, ele olhou e disse: puxa, parabéns, você tem um QI incomum, 140! Olha, ali na mesa daquela coluna tem um rapaz do mesmo nível. Vá lá! Dito e feito, os dois logo começaram a discutir sobre o “big bang”, relatividade, “pulsars, quasars” e afins. Ao próximo freguês, o dono do bar disse que ele tinha QI 100, ótimo, e sugeriu que ele se acomodasse na mesa do outro lado com um frequentador do mesmo QI. Falaram sobre artes plásticas, terceira via, Brexit e por aí vai. Finalmente, veio um terceiro, meio perdido, e ao ver o QI do rapaz, meros 40, sugeriu que ele ficasse à vontade na mesa dos fundos, onde iria se dar bem com a companhia – de quociente igual ao dele, deduziu. O rapaz foi direto ao lugar e se apresentou: olá, meu nome é Mário, muito prazer! O outro: olá, o meu é Nelson, prazer. E para começar a conversa, perguntou: você toca arco francês ou alemão?)
Outro contrabaixista pitoresco era o Novelli, egresso da bossa nova e que gravou com artistas como Gal Costa, em “Pérola Negra”. Disse-me com orgulho que nunca tinha estudado música, falha que, acho, compensava com seu ouvido e memória prodigiosos. Para enriquecer as linhas do seu instrumento, ouvia muito Bach, prestando atenção no baixo-contínuo do mestre do barroco alemão. Novelli falou que só sabia duas coisas: onde a “nota do acorde” está e para onde vai. O “caminho” ele inventava na hora.
Ouvir também nunca foi problema para o grande trombonista Raul de Souza (1934). Saído da noite carioca, Raul mudou-se para os EUA, onde desfrutou de ótima reputação, tocando em diversas gravações e shows com alguns dos melhores artistas. Conta-se que, em uma gravação, Raul viu-se em apuros, pois não conseguia ler certa passagem mais complicada, era meio fraco na leitura. Na primeira brecha, virou-se para o colega ao lado e disse que aquele trecho estava errado, só podia, e pediu que ele o tocasse. Depois de ouvir, gravou a frase na memória, repetiu-a e disse: é, acho que você tem razão, está certo.
Cauby Peixoto, idade antes não oficial (morto em 2016, descobriu-se que aos 85), era um prodígio do ouvido e da memória. Tive a oportunidade de com ele tocar no Tijuca Tênis Clube, início dos anos 70, como “ringer” (“on the bell ring”, ao “soar da campainha” do início do show). Após anunciado seu nome, uma plateia formada em 95% por senhoras idosas frenéticas, Cauby fez charme para aparecer. Surgiu e, amainados os aplausos, pediu que anotassem títulos de músicas em pedacinhos de papel e os jogassem em uma cumbuca de vidro. Sorteou e cantou a primeira: “Free Again”, logo de cara, solfejando o arpejo do acorde para nós localizarmos a tonalidade. Ouvido absoluto. Cauby falou, só de charme, que acabara de chegar do México com sua banda – que nunca havia visto, fora seu irmão, ao piano. Após várias exibições de ouvido (para quem entendia) e memória, cantando em português, inglês, francês e italiano, terminou o show sob explosivos aplausos.
Em NY, uma divertida do saudoso maestro soberano, Tom Jobim (1927-1994), compositor que carregava a aura de um gênio. Ao perceber que músicos curiosos se apinhavam no aquário (lugar separado por um vidro, onde fica a técnica do estúdio) para vê-lo, recusou-se a gravar, segundo o meu amigo baterista Pascoal Meireles. Disse que se ficassem lá espiando iriam ver “que não sei tocar”. Outra: antes de eu me mudar para os EUA, meu pai o encontrou na casa do escritor Paulo Mendes Campos (1922-1991). Disse ao compositor, orgulhoso, meu filho vai morar e estudar nos EUA. Jobim: ótimo, vai voltar falando inglês. Bom, isso era para ele, Jobim, que nunca precisou sair para aprender, acreditava realmente na “terra em que se plantando tudo dá”, do Caminha (hoje há opções!). Sonhador, boêmio e tido como americanizado pelos críticos nacionalistas mais radicais, já com certa idade adotou um charuto, à Villa-Lobos, e declarou sua paixão por urubus e matitaperês, após descobrir que galinhas, cães e bois não são animais nativos, e sim importações, como o arroz e o café.