“Amadeus” (1984) era o título de uma peça teatral concebida por Peter Schaffer, que basicamente se pretendia uma imaginativa e saborosa versão da biografia de Wolfgang Amadeus Mozart. A peça foi transportada para o cinema pelo cineasta Milos Forman, nascido na Tchecoslováquia – coincidência ou não, país (então uno) em cuja capital, Praga, grande centro de música que era, Mozart estreou algumas de suas obras, como a sua deslumbrante ópera “Don Giovanni”.
Antes do absoluto sucesso do filme Amadeus (mais de uma dúzia de prêmios, incluindo um Oscar, em 1985), estouraram outras grandes obras de Milos Forman, como o louco “Um Estranho no Ninho” (“One Flew Over the Cuckoo’s Nest”), de 1975, que arrastou nada menos do que cinco grandes prêmios no Oscar), com uma impagável interpretação de Jack Nickolson. Filmou também “Hair” (1979), com uma magnífica coreografia de Twyla Tharp, do afamado American Ballet Theatre.
Amadeus tinha na trama, como pano de fundo, uma certa inveja mortal de Antonio Salieri (1750-1825) por Mozart, de quem fora professor, pelo talento descomunal de seu aluno, razão pela qual, em evidente ilação romantizada cinematograficamente com fins de impacto, o mestre teria envenenado seu genial discípulo, então com 35 anos. Mas ambos eram apenas – além de mestre e discípulo – dois bons amigos. Após a morte de Mozart, o antigo professor Salieri continuou a dar aulas para o filho do vienense. E ainda foi mestre de ninguém menos do que Beethoven, e Schubert e até Franz Liszt!
Nascido em Verona, Itália, Salieri foi um dos mais proeminentes compositores europeus, além de disputado professor. Na Áustria, criou fama na Monarquia de Habsburg, tornando-se Kappelmeister (mestre de capela), onde foi responsável pela ópera de 1774 a 1792. Muitos compositores adeptos do gênero tinham, claro, intensa rivalidade com Salieri, a quem culpavam pela falta de acesso aos grandes teatros, que seriam “domínios” do italiano. Mozart chegou a escrever ao seu pai, Leopold, queixando-se da dificuldade de transpor as barreiras e o poderio de Salieri, razão pela qual os detratores deste último tentaram forjar a versão do envenenamento, nunca levada muito a sério, mas bem explorada na peça de Peter Schaffer. Com essa aversão a Salieri, no século 19 a música dele foi praticamente esquecida, tendo “ressuscitado” no século 20 até mesmo em parte por causa da peça e do filme “Amadeus”, e a polêmica do envenenamento romanticamente suscitada para atrair público.
Antonio Salieri foi um compositor profícuo e incansável: deixou além suas principais 42 óperas dois réquiens, centenas de missas, coros, arias, ofertórios, graduais, hinos, introitos, motetos, 6 concertos para solistas, 9 sinfonias e variações, 5 balés, música incidental para cena, 12 marchas e serenatas, 7 peças para música de câmara e afins, uma vasta produção. Além de suas tarefas profissionais de kappelmeister, como organização, coordenação geral e seus naturais afazeres familiares, Salieri ainda encontrava tempo para escrever incessantemente.
O que me incentivou a escrever este texto foi a recente apresentação, pela Orquestra Sinfônica do Conservatório de Tatuí, sob a batuta de João Maurício Galindo, da obra “26 Variações sobre A Loucura de Espanha”, que também impressionou meu colega Antonio Ribeiro. A forma “tema e variações” é consagrada como uma maneira de o compositor explorar sua própria habilidade em desenvolver uma ideia, havendo grandes exemplos na literatura musical, como as “Variações sobre um Tema de Haydn”, de Brahms, “Variações sobre o Tema de Moisés no Egito”, de Rossini, por Nicolò Paganini, “Enigma Variations”, de Elgar, “Variações Goldberg”, de Bach, “Variações Rococó”, de Tchaikovsky, entre inúmeras outras.
O tema que serve de motivo para variações pode ser absolutamente simples, como o utilizado por Salieri na obra citada, mas configura-se espaço e material aberto para sua imaginação brilhante. Aparentemente simples exercícios de composição transformam-se em modelos extemporâneos, que levam a traços de modernidade. Isso, desde os diálogos entre as cordas, os da harpa com os “tutti” (orquestra inteira), até repetições que lembram, por impossível que possa parecer, o minimalismo contemporâneo de Philip Glass e Steve Reich, no século 20. Chama a atenção um belo solo de violino, com espírito virtuosístico, e um intermitente jogo de “perguntas e repostas” nos diálogos entre instrumentos ou entre solistas e orquestra, instrumento por vez ou alternadamente em um mesmo movimento.
Salieri foi diagnosticado com demência (ou alguma outra versão de insanidade, talvez desconhecida à época) e não muito tempo depois faleceu. Foi sepultado em maio de 1825, e seu próprio “Réquiem em Dó menor”, ainda inédito então, foi apresentado na cerimônia. O poema desta obra foi escrito por um de seus alunos, Joseph Weigl, em homenagem ao mestre, e gravado na lápide do compositor: “Descanse em paz / descoberto do pó, a eternidade deve florir para você. / Descanse em paz! / Em harmonias eternas / seu espírito agora está liberto/ ele se expressa em notas encantadoras / e agora flutua na beleza do sempre!”.
Já ouvi músicas de Salieri em rádios americanas especializadas, como a WQXR (http://www.wqxr.org/), ou 105.9 FM/NY, que às vezes sintonizo enquanto trabalho, mas não vejo o mínimo da devida importância que deveria ser dada ao compositor no Brasil. Por que não, por exemplo, encenar a bela ópera “Axur, Re d’Ormus”? Ficará para a história como simples coadjuvante?