De Portugal, o escritor e articulista Ignácio de Loyola Brandão escreveu um ótimo artigo (“Estadão”, 17 de março – C8) intitulado “Correntes d’Escritas, pedaço de Utopia possível” (frase da célebre escritora lusa Lídia Jorge). Apesar de o título soar erudito, o conteúdo é de fácil compreensão, e poderia ser resumido em uma frase destacada em uma caixa de texto no centro do artigo: “No Brasil, jamais vi um presidente aparecer em um acontecimento literário”. Depois retomaremos o assunto do evento mencionado por Loyola e Portugal, mas vale antes uma digressão sobre o comentário em destaque.
Sem entrar em questões políticas, se fizermos uma retrospectiva veremos que é quase verdade. Quase. O presidente atual, Temer, é um poeta de horas vagas que toma o cuidado de não divulgar muito seus versos. Não demonstra apego pela literatura, apenas se pretende erudito, com os “fá-lo-ei” à Jânio. Da Dilma lembro-me apenas de um episódio, a entrega da Ordem do Mérito Cultural, em Brasília, 2012, na qual minha irmã Inês, emocionada, recebeu homenagem, “in memorian” de meu pai, apenas um mês após a partida dele (a premiação havia sido votada meses antes).
Dilma, ao lado de Mercadante, Sarney e Marta, entregou-lhe um estojo aveludado em vermelho, dentro uma belíssima placa dourada com a estampa “Ordem Grã-Cruz”, a mais alta láurea. Tivesse lido a placa, Dilma teria visto a data de um ano depois, de volta ao futuro. Falei para minha irmã guardá-la, por via das dúvidas, fotografá-la e requerer outra corrigida. Detalhe: apesar de a família inteira não simpatizar com a Dilma, meu pai e minha mãe mais radicalmente, minha irmã recebeu o prêmio dispensando qualquer discurso oportunista contra a presidente, bastou-lhe um sorriso à “noblesse oblige” (nobreza exige).
Já Lula foi adulado por intelectuais “de esquerda”, mas nada escreveu ou leu – falo de literatura, repito aos apressados. Antes dele, FHC, acadêmico (e política também à parte), não só frequentava lançamentos como esteve ao menos na abertura da Bienal do Livro de 1995. Recebia literatos e adorava música – era assíduo no Teatro Municipal de São Paulo. Eu tinha direito a ingresso e ia muito, já ele requisitava o camarote presidencial, sua entrada recebida com aplausos. Depois, o mesmo na Sala São Paulo, com a Osesp, de cujo conselho foi presidente após retirar-se da cena política.
Retrocedendo mais, tivemos um presidente que, apesar de formado em bom colégio do Rio, o “São Vicente”, de nada aproveitou o empenho literário dos professores: Fernando Collor. Sucedeu José Sarney, autor de “Marimbondos de Fogo”, livro que me abstenho de comentar porque não li mais de quatro páginas, “demolido” em artigo do Millôr Fernandes. Sarney foi guindado à Academia de Letras. Tancredo Neves, apesar de ter nascido em terra de escritores, Minas Gerais, parecia pouco ligar. Os presidentes da ditadura, Figueiredo, Geisel, Médici, a Junta Provisória e Castello Branco, foram sete fiéis retratos de 21 anos de trevas literárias no governo, censura à parte, para ficar só na arte de escrever.
Um amigo e quase vizinho de meu pai, o escritor e psicanalista Hélio Pellegrino, quando foi preso, teve sua esposa, Maria Urbana, recebida a pedido de um pistolão (no sentido figurado!) pelo comandante do I Exército, o temido Sílvio Frota. Para quebrar o gelo, Maria Urbana tentou adocicar o general, dizendo “o senhor, como intelectual…” E foi bruscamente interrompida por Frota, que chutou uma cadeira e exclamou “não sou intelectual, sou homem de ação!” Esse foi o tônus de um longo regime.
Passando Jango a Jânio, professor mas não promotor das letras, chegamos a JK, que acredito tenha sido uma exceção. Apesar de não parecer um aficionado pela leitura, cercou-se de escritores em seu governo: meu pai, Autran Dourado, Geraldo Carneiro e Augusto Frederico Schmidt, entre outros. Recebeu gente como André Malraux e fez várias ações em favor das letras, como tombar a obra de Machado de Assis, batalha de meu pai. JK gostava dos discursos inteligentes que lhe escreviam, de estar cercado por intelectuais, escritores, pintores, músicos, gostava de ser visto como homem culto e interessado na arte.
Antes de JK, não me lembro de nada que mereça nota. O destaque negativo fica para Getúlio e seu censor, o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), que se possível teria mandado incinerar todos os livros, como no filme “Fahrenheit 451”, dirigido por Truffaut, (do livro de Ray Bradbury).
Em 2000, meu pai foi laureado em Portugal pelas mãos do presidente Mário Soares, em pessoa, com o Prêmio Camões de Literatura. Na pátria do autor de “Os Lusíadas”, terra também de mestres como Alexandre Herculano, Fernando Pessoa, Eça de Queiroz e o mais recente Saramago, a literatura é orgulho nacional. No evento Correntes d’Escritas, deste ano, escreveu Loyola no seu artigo do “Estado”, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa foi convidado a abrir a cerimônia, e fez as honras da casa. (Convidado a abrir a Bienal do Livro de 2016, Temer não compareceu).
Loyola descreve as Correntes como um “tsunami literário”, evento impecável superlotado todos os dias pelos amantes das boas letras. O apreço dos portugueses pela literatura não é de hoje, vem de longe. Pena mesmo é que nossos políticos preocuparam-se mais em nos impingir a ortografia lusitana, com o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), e não em incentivar no país o que os irmãos da península têm de melhor do que nós, o amor pela boa literatura.