Criminalizando o funk – parte II

Prosseguindo com a discussão sobre a criminalização do funk, repito que sou isento e imparcial para falar do gênero, pois confesso que nunca fui fã da versão brasileira. O que não quer dizer que não lhe devo respeito, como a toda e qualquer manifestação artística. É um ritmo que fala com o corpo, como disse George Clinton, do Funkadelic: “Free your mind and your ass will follow” – literalmente, “libere sua mente e seu traseiro a acompanhará”. Para tanto, as letras são curtas e diretas, de contestação à ordem social, à repressão, e falam de drogas, sexo e polícia, enquanto o ritmo embala o corpo: sacudido, dançado, chacoalhado, signo de uma tribo que tem seus costumes particulares e seu próprio jargão para falar, contando a dura realidade das periferias. Esse “funk brasileiro” é uma coisa à parte, tem quase nada a ver com o ritmo americano. Caetano Veloso, em entrevista recente à BBC, disse que “o funk no Brasil hoje é uma coisa totalmente brasileira. E as letras, que às vezes são muito obscenas, ou ligadas ao narcotráfico e à bandidagem, ficaram cada vez mais criativas. Os efeitos sonoros também”.

Nos anos 1970 pude assistir ao vivo, no Radio City de NY, ao fantástico Sly and the Family Stone, grupo com muita dança, metais, saxes e vocais admiráveis, na esteira do sucesso no Festival de Woodstock, de 1969. E ainda curto na internet a beleza dos espetáculos do Earth, Wind & Fire, um grupo especial, as vozes em falsete cantando letras de amor, show de dança perfeita, muita técnica, de prender a respiração.

Querer simplesmente tornar crime um gênero musical, jogando a Constituição no lixo e ferindo de morte a livre manifestação artística é um arroubo de pequeno segmento radical, ora em franca ascensão no Brasil, reflexo de uma meia-volta ao passado no mundo inteiro, em nome de uma pureza e castidade inexistentes. (E não é um fenômeno nosso, é mundial: a Rússia de Putin acaba de proibir uma encenação de “Morte em Veneza” no famoso Bolshoi – como o filme a que assisti, com Dick Bogarde vivendo uma platônica, distante paixão homossexual). Tornar crime um gênero musical não é insensatez, é insano mesmo, historicamente desconexo. O blues, em seu início no sul dos EUA e principalmente em New Orleans, brotava no submundo das drogas, lenocínio e outras práticas não aceitas pela sociedade, mas era o meio em que os artistas viviam. A música acontece em todos os ambientes, e não é a responsável por eles – quando muito lhes é consequência: violência, falta de acesso a um bom ensino, pobreza, péssimas condições de moradia e saúde pública quase inexistentes. (A “Folha” de 17 de julho traz, na capa do caderno “Cotidiano”, a matéria: “Baleados crescem 61% em hospital do Rio”. Isso, no primeiro semestre – e nada a ver com o funk.

Nunca é demais lembrar que o samba também foi hostilizado em suas origens (“coisa de negro”), que remontam às danças angolanas e congolesas e surgiu nos submundos considerados menos castos até ser assimilado pela sociedade, assim como outros gêneros oriundos da África, como a umbigada. E foi via choro, mistura de schottishes e mazurcas com samba, que se abriu caminho para mais de um século de música popular brasileira. Podemos dizer que tudo o que temos de melhor devemos ao samba.

Após outro baile, o da Ilha Fiscal, em 6 novembro de 1889, a seis dias da queda do Império e da Proclamação da República, a limpeza encontrou, entre outros, “8 raminhos de corpete,  3 coletes de senhoras e 17 cintas-ligas”. Fotografias foram convenientemente inutilizadas. Fontes não oficiais falavam de bandejas e canudinhos de prata, para o consumo do mesmo cloridato usado nos atuais bailes funk. Festa do imperador, da nobreza e das classes mais abastadas!

Pois se os arautos da atual onda de falsa pureza alegam que nos bailes do gênero funk cometem-se crimes, como uso e tráfico de drogas, prostituição, sexo exposto e envolvimento de menores de idade, acaso criminalizar o gênero vai extinguir os crimes por eles alegados? Já não estão todos tipificados no Código Penal? O crime, onde quer que ocorra, deve ser visto sob pontos de vista de diversas ordens. Se menores vão a esses bailes, o criminoso é o funk? Por que adolescentes frequentam bailes de madrugada? E a Educação, dever precípuo do Estado, por onde anda? O que acontece nesses bailes nada mais é do que um espelho da vida nas casas, barracos e muquifos onde as mesmas práticas acontecem, não é exclusividade do embalo, é o cotidiano da vida na periferia.

O projeto que corre no Senado é o suprassumo da violência censória e da repressão e retrato, em outra ponta, da cegueira social, como no “Ensaio” de Saramago. Por que não veem crimes em boates finíssimas da zona sul paulistana onde homens da classe branca mais rica e poderosa escolhem moças “de fino trato”, à espera de freguesia, e nos quartos é frequente a cocaína? A sociedade faz vista grossa porque são “finos”, e em sociedade fina tudo se pode. As “soluções” radicais podem agradar a certo tipo de político e adeptos de alguma seita. Será que uma simples lei acabaria com as chagas das periferias?

Lembro-me de alguém já ter cogitado proibir porta-malas nos automóveis para evitar sequestros, uma vez que é ali que os criminosos prendem suas vítimas. A proposta de criminalizar um gênero musical para acabar com crimes já tipificados é surreal, perniciosa e absolutamente hipócrita. Por essa lógica, que proíbam antes a venda de isqueiros, para acabar com o uso do crack.