Henrique Autran Dourado
Dorival Caymmi compôs o samba “Você já foi à Bahia?” em 1941, homenageando com dengo a culinária da sua terra: vatapá, caruru, munguzá; e as morenas, as “donzelas do tempo do Imperador”. Loas ao samba, ao Bonfim, à imensa riqueza cultural, à beleza das praias. Que bom poder falar do que temos de bom, cantar a beleza, sem termos vivido aqui uma guerra no sentido amplo da palavra, a invasão cruel. Jorge Ben cantou um país bonito por natureza, e Gil desdenhou as ogivas nucleares: “a bomba explode lá fora / e agora o que vou temer?”
Em Boston, cidade de Massachusetts, EUA, onde morei por diversos anos, não há samba nem frevo, mas tem rock, jazz e salsa, e para quem visitar o país há um universo a ser visto. Porém, cuidado! O filme à noite não é para sessão infantil: sujeitos perdidos, sem rumo nem prumo, falando sozinhos ou xingando sabe-se lá quem ou o quê pelas ruas e estações de metrô. São os “crazy vets”, “veteranos loucos”, subprodutos das guerras. Certo dia eu andava na movimentada Huntington Ave., centro. Um senhor de barba estilo “lumberjack” (lenhador), cabelos desgrenhados, usava uma camiseta onde se lia “Visit fascinating Vietnam”, estampada com dedos da mão segurando uma granada. A guerra tinha acabado havia dois, três anos, e eram comuns os suvenires, como chapéu e casaco de campanha bem surrados. Um outro contou que o “front” era um espetáculo de luzes e sons, e se alguém perdesse um braço ou uma perna nem sentiria: havia morfina em estoque para que se dopassem antes de embrenhar alucinados no cenário de fumaça, tiros e mísseis. Eram sujeitos imprevisíveis, apesar de não necessariamente perigosos; pelo sim, pelo não, melhor evitá-los.
Como precisava de dinheiro, logo entrei para um grupo latino de salsa, merengue, cumbia e outros ritmos, liderado por um refugiado cubano, apelido William Fox. Havia outros dois caribenhos, precisavam de sangue latino para controlar aquele balanço difícil. E lá fui eu para Roxbury, correspondente ao Harlem de NY. No metrô, ao adentrar o subsolo do bairro, sobe um sujeito e em pé, escorado em um daqueles “poles”, pôs-se tranquilamente a preparar um baseado. Com medo de confusão, perguntei-lhe se não temia ser preso. Ah, para quê? Ele despejou um discurso de herói de guerra, que arriscara sua vida no inferno enquanto os “branquelos” descansavam tranquilos em suas casas. Desaguou um falatório caudaloso, desafiando quem lhe pusesse as mãos, enquanto puxava a bainha da calça para mostrar uma tosca prótese de madeira. O trem parou na minha estação, e saí pela porta mais próxima deixando o esfumaçado vagão para trás.
Coisa não rara ver malucos com pescoços vermelhos tatuados ao estilo marine nos braços, discursando – ninguém olhava ou dizia nada. Era o rescaldo da então última guerra, a do Vietnã, que sucedeu a da Coreia, encerrada antes de eu nascer. Antes delas, houve duas Grandes Guerras (1939-1945 e 1914-1918) uma história vinda desde a secessão, Guerra Civil americana (1861-1865), passado que marcou gerações após gerações. Os veteranos, sempre que retornavam às suas casas, eram incensados, as cidades se enfeitavam e as populações lhes faziam as honras. Lindo, mas no cotidiano… Depressão, pesadelos, insônia, alucinações, distúrbios do humor, síndrome do pânico, ímpetos suicidas e atitudes nada previsíveis, não raro violentas. O pouco de guerra que vemos na TV ou nos jornais fora para eles um longo e interminável fim do mundo.
Imigrantes e exilados de países invadidos enfrentam uma outra guerra, a da adaptação à nova realidade. Um jovem pianista que me acompanhou em recitais, Minh Trihn, disse que saiu do Vietnã ajudado pelo governo americano com os dois irmãos e seus pais. Foram a um supermercado e compraram latas de “dog food” (comida de cachorro). Mas espera aí, a família não tinha animal de estimação! Simplesmente comeram aquela pasta no jantar – no Vietnã come-se carne de cachorro -, pois assim entenderam o rótulo das latas.
No Brasil, há uns 20 anos, eu estava à frente da organização de um curso de música com dezenas de professores. A Secretaria de Cultura da cidade havia marcado – disseram que sem saber – uma reunião no mesmo local onde seria a nossa. Chamei todos à rua e fomos a uma espécie de pracinha, eu precisava da reunião para explicar sobre os passos seguintes, onde ficaria cada grupo e por aí vai. Um deles, o americano Jeff – o nome é fictício -, excelente músico, de vez em quando sorria. Achava tudo meio engraçado, sempre ria à toa e agradava a todos. Um dia, perguntei-lhe se tinha sido escoteiro, como eu, porque o oitavo mandamento da lei dos “boy scouts” diz: “O escoteiro sorri nas dificuldades”. Depois de mais um sorriso, Jeff respondeu-me com uma pergunta: você esteve no Vietnã? Engoli em seco e ele me fitou nos olhos até onde minha retina pôde suportar. Ele, pouco mais velho, havia estado na guerra que envolveu Laos, Camboja e Vietnã. Qualquer problema para ele era pura alegria, passatempo de criança.
A guerra que eclodiu com a invasão Russa à Ucrânia não vai deixar sequelas diferentes, provavelmente serão bem maiores, há o medo de ataques nucleares, há terra arrasada e economia destruída. São 42 milhões de habitantes se expressando em uma dúzia de idiomas em 603.600 km². Os sobreviventes terão cicatrizes físicas e mentais profundas, a dor da perda de familiares, uma reconstrução total quase inviável e para sempre aquele odor macabro. Será grande o número de vidas errantes e sem sentido.