Para não nos alongarmos voltando a Platão (387 a.C.) e todo o longo caminho percorrido até hoje, vale recorrer ao “Houaiss”, muito confiável para breves consultas. Diz o verbete universidade: “Instituição de ensino e pesquisa constituída por um conjunto de faculdades”. Sobre faculdade, esclarece: “Instituição de ensino superior (isolada ou integrante de uma universidade”). A exemplo, na USP há quase 30 faculdades, escolas e institutos.
Mais de uma vez ouvi referências a alguma “universidade de música”, coisa inexistente, pois por definição vimos que ela engloba diversas áreas do conhecimento. Faculdades às vezes agrupam mais de uma área, e parecem vislumbrar a ampliação rumo a um patamar maior, a universidade. Exemplo é um curso de música que criei e dirigi em SP, trabalho extenuante iniciado em 2005, hoje referência entre as particulares. A faculdade também congrega agronomia, direito e administração.
Criar um curso com o aval do MEC é trabalho de Hércules. Mínimo de doutores, mestres e, enfim, bacharéis, as classes seguindo um modelo padrão para todas as áreas e a pouca compreensão do ministério sobre a especificidade musical. Há entraves como aulas individuais de instrumento em um quadro de classes e horários a ser preenchido dentro das regras; faz-se de conta que todos os alunos terão essas aulas na mesma hora. Após a formatura da primeira turma, outra visita do MEC autorizará ou não o curso – no caso mencionado, foi nota máxima.
Na esfera pública, conheço os meandros da USP, da qual me aposento em breve, e onde há uma relativa autonomia. Mas a Fuvest… Bom, a adequação da música às regras da Fuvest foi, na medida do possível, melhorada, mas é nonsense pensá-la inserida em um universo tão multifacetado e hermético. O problema maior hoje ainda não é só o do ingresso de alunos, mas de professores. Eu havia chegado com um diploma de peso dos EUA, mas após pouco tempo houve uma publicação da reitoria no Diário Oficial, em nome do “interesse acadêmico”, dando-me prazo para fazer o mestrado.
Mas qual mestrado? Não havia tal curso em música! Como alguns colegas, escolhi e fui aceito em artes plásticas. Confesso que aproveitei muito, mas quando o Departamento de Música emplacou três doutores e abriu o curso de mestrado foi lá que eu concluí o título. O mesmo se deu com o doutorado: não havia ainda tal curso em música. Lá fui eu me preparar, recuperar o francês (o inglês já tinha sido o idioma no mestrado), e a sorte de ser aceito como orientador pelo saudoso e imortal da ABL Sábato Magaldi. Foi como a forma musical “variações sobre um tema”: repeti a dose do mestrado, e quando o doutorado foi estabelecido na música mudei-me para lá.
Hoje, o título de doutor é pré-requisito para ingresso nas públicas. Isso traz maior peso aos departamentos, mas tolhe o ingresso de alguns dos melhores profissionais nas artes. Por exemplo, sequer poderiam se inscrever estrelas internacionais como Nelson Freire e Antonio Meneses, só para citar dois nomes cultuados internacionalmente, sem falar em tantos ótimos músicos brasileiros ou estrangeiros que residem aqui. Um hipotético aluno, “emendando” diplomas, mesmo sem apresentações de porte ou orquestra de primeira no currículo, logo se torna apto a disputar uma vaga – rotina que é desconhecida no exterior: meu professor de instrumento mal se formou bacharel e já era o orientador mais procurado, como solista do naipe na Sinfônica de Boston. Isso, aos 23 anos de idade.
Eleazar de Carvalho, nosso maestro maior, foi titular da famosa Yale University tendo apenas um bacharelado. Recebido com todas as honras e a presença do presidente brasileiro, chegou agraciado com sua cátedra e o título de doutor “honoris causa” da própria Yale.
O renomado educador Caio Moura Castro publicou na Veja (fev. 2005): “Harvard, quem diria, foi parar no Irajá”, parodiando a peça “Greta Garbo, quem Diria…”. Disse ele que certo dia Larry Summers, presidente de Harvard University, teria assistido a um desfile da Beija-Flor e se apaixonado. Voltou de mala e cuia, comprou casa em Nilópolis, convidou os melhores professores, criou ali uma Harvard tropical. Mas o MEC, ao inspecionar, suspendeu o curso por estar em desacordo com as “regras”. Essa alegoria de Moura Castro não é cômica, é trágica.
Agora, o pior de tudo: nas escolas superiores dos EUA – conheço mais de 30 delas -, a prova maior, decisiva, não é uma Fuvest, e sim tocar para uma banca. No Brasil, ao equiparar um vestibular de música ao de engenharia, perde a primeira: ao contrário dos candidatos aos outros cursos, que quase nada sabem de suas profissões almejadas, alunos de música devem chegar prontos, ou seja, tocando bem. Não se faz um violinista ou um pianista em quatro anos, a universidade apenas lapida o aluno que já tem bom desempenho. Daí a necessidade dos bons conservatórios, escolas de música ou ótimas escolas preparatórias, como as de algumas escolas americanas.
As melhores instituições superiores de música dos EUA têm 240 (Curtis), 800 (New England) ou mil alunos, às vezes um pouco mais. E são muitas, de todos os níveis. A diferença se sente na hora da duríssima competição, que vai desde o ingresso no curso até uma boa colocação como músico profissional. Aos jovens músicos brasileiros, digo sempre que devem escolher seu professor e universidade! Diploma só pelo diploma serve galgar etapas para um dia ser um doutor e prestar concurso para uma universidade. Ou para ter direito a prisão especial.