Henrique Autran Dourado
No início dos anos 1970, cursei licenciatura em música na Fefierj (Uni-Rio). A escolha se deveu à oportunidade de estudar com Hélio Senna e Silvio Mehry, ambos formados pelo Conservatório de Moscou, e Marlene França, ex-aluna de Ginastera. Também tive liberdade para escolher o professor de instrumento de minha preferência. Certo dia, uma porta se abriu para mim nos EUA, e corri para Boston.
Estudei por um ano no Berklee College, enquanto me preparava para ingressar em minha opção primeira, o New England Conservatory, conhecido como uma das três melhores instituições dos EUA. (Berklee ajudou-me na parte de escrita e arranjos para jazz, foi uma grande vivência). Preparei-me ao máximo, e obtive por prova um “Financial Aid Award” do New England, fundamental à minha sobrevivência. Lá, estudei contrabaixo por poucos meses com William Rhein, até o encontrarem morto em circunstâncias sinistras – mas previsíveis. Fiz prova para ingressar em uma das três vagas na classe especial de Edwin Barker, solista da Sinfônica de Boston, e passei a estudar ainda mais.
Formei-me após um pré-recital com banca e um recital público externo. Surgiu então um convite para trabalhar no Brasil em uma organização sob a liderança de um grande nome, proposta irrecusável. Decidi-me e comecei a organizar a papelada. Em uma viagem ao Brasil estive no MEC, no Rio, e a funcionária responsável pela revalidação de diplomas do exterior me fez uma série de exigências, como um documento, à parte do diploma com a assinatura do presidente da entidade, no qual deveria constar uma confirmação da autenticidade do título (pelo mesmo presidente que assinara o diploma anexado!) Ambos deveriam ser colados com um selo inviolável com a marca d’água da instituição e outra de um “notary public” – o correspondente a um tabelião, prática inexistente nos EUA. Sem resistir, o presidente do NEC deixou escapar: “o país da fitinha vermelha”.
Retornando ao Brasil, segui as instruções do MEC e da burocracia. A papelada teve tradução juramentada, carimbos e selos de acordo com as normas do Ministério. Para encurtar os dois ou mais anos previstos, protocolei o pedido de revalidação na Unicamp, fugindo do MEC. Um professor visitante da Universidade de Indiana, Mel Carey, chamado para atestar a qualidade do curso, resumiu: “fabulous!” Não tardou a burocracia apontar que faltava em meu currículo escolar um semestre de Problemas Brasileiros, que a ditadura, já agonizante, havia travestido da velha Educação Moral e Cívica. Inscrevi-me, fiz o “paper” final da disciplina e, após quase três anos de via crucis burocrática, em 1985 recebi a chancela final, assinada pelo reitor da Unicamp, então Aristodemo Pinotti, número devidamente carimbado.
Ingressei como professor na USP em 1988: tal qual os outros, eu só tinha um diploma superior. Logo, a Reitoria publicou no Diário Oficial o meu ingresso na carreira, dando-me até seis anos para apresentar o diploma de mestre. Fiz duas disciplinas de pós-graduação como aluno especial que foram aproveitadas no curso. Ingressei oficialmente na área de artes plásticas, uma vez que ainda não havia mestrado em música na USP. Preparação de dissertação, o temível exame de qualificação e finalmente a defesa pública – ambas perante uma banca já no Departamento de Música, com mestrado na área já oficializado. O diploma saiu em artes plásticas: sete disciplinas de três horas semanais cada – o tal “superdoutorado”, enquanto um candidato a doutor tinha o “privilégio” de concentrar-se a fundo no trinômio pesquisa-tese-defesa e a exigência de apenas quatro disciplinas.
Após breve recesso, vi que teria de enfrentar o doutorado. Desta vez, em artes cênicas, ainda não existia o curso na música. Disciplinas, muitas horas de trabalho e um projeto de pesquisa bem mais amplo, com mais exigências e bem mais árduo: muita bibliografia, correspondências, entrevistas, idas a bibliotecas, procuras por fontes, etc. Tudo isso para um certo dia, material pronto, submeter-me à decisiva banca de qualificação. Um semestre depois, preparando a oratória e estudando com muito afinco, imprimi os dez exemplares, cada um com quase trezentas páginas, e fui à banca em sessão pública com a participação de convidados estranhos ao corpo docente da Universidade. Foi uma longa sessão de perguntas, questionamentos, olhares clínicos e pequenas armadilhas, mas estava preparado para a ocasião.
Vinte e um anos depois da expedição do diploma de doutorado, sempre lendo e pesquisando, achei que talvez fosse hora de um grande salto, o pós-doutoramento, ou simplesmente pós-doc. A ideia me fascinou, mesmo sabendo do trabalho árduo que teria pela frente: informações sobre minha atuação profissional e acadêmica, publicações, tudo desde o início da carreira até os dias de hoje, qualificado e quantificado. Softwares para contabilidade de citações de meus trabalhos em livros e produções acadêmicas, detalhes de toda uma vida. E um projeto em que se privilegia a pesquisa no mais alto nível, algo que possa ser útil ao país, à comunidade acadêmica e à pesquisa em geral.
A obtenção de títulos verdadeiros e reconhecidos no Brasil não é brincadeira. Não é um pendurar de papeis sem lastro e emoldurados na parede e o decorar do currículo com títulos para fazer bonito. Como dizia meu professor nos EUA, nada é feito para ser fácil, muito pelo contrário. Mas há um caminho a ser evitado: falsear e plagiar são habilidades fáceis mas traiçoeiras: é como armar uma bomba-relógio que um dia lá na frente vai estourar na sua mão.