Um futuro para o Haiti

Henrique Autran Dourado

Jovenel Moïse, presidente do Haiti, foi brutalmente assassinado aos 53 anos no dia 7 de julho em Porto Príncipe com ao menos uma dúzia de tiros, segundo o oficial Carl Destin, que o encontrou em decúbito ventral no quarto do escritório, o aposento saqueado e depredado. Com ele, a primeira-dama, Martine Moïse, que foi severamente atingida e hospitalizada. As causas do ato de barbárie ainda serão apuradas, com o jargão de sempre, “com o maior rigor”.

O crime gerou revolta entre policiais, exército e milícias, o país mergulhando no mais absoluto caos. Houve 23 prisões, entre elas as de um juiz e uma agente da polícia. Um tiroteio cruzado matou quatro suspeitos, outros dois foram detidos e três oficiais que haviam sido feitos reféns libertados, segundo o The Guardian. Para incendiar o caos, em plena pandemia, o aeroporto da capital foi fechado e todos os cidadãos obrigados a permanecer em casa, nas piores condições. Especulações sobre os motivos do crime dão asas a toda sorte de teorias conspiratórias e revivem a paranoia que já acompanha a vida dos haitianos há séculos. Independente do jugo francês desde 1º de janeiro de 1804 – de onde se explica, entre tantas coisas, o nome da capital, Port au Prince -, o Haiti somente teve sua liberdade reconhecida 21 anos depois, em 1825, obrigado a pagar uma dívida arrasadora aos antigos dominadores.

O dialeto local, “créole”, coteja com o francês em geral utilizado na escrita, embora apenas 42% do povo o domine; há, ainda, um pouco de espanhol, desde o autoexílio do herói latino-americano Simón Bolívar, em 1815. Acossado pelos escravizadores de Cristóvão Colombo desde 1492, ano da descoberta da América, o Haiti viu muitos de seus nativos dizimados. Sofreu com a invasão francesa, com um terremoto que em 2010 matou perto de 300 mil pessoas em um país de apenas 12 milhões de habitantes. O povo se divide entre duas religiões ou as mescla: uma formal, a católica, e outra, que anda pelas sombras, o “voodoo”.

Duas passagens marcaram-me na vida o nome do país caribenho. Uma, quando era diretor do Conservatório de Tatuí: um jovem haitiano de pouco mais de 20 anos veio para o Brasil para estudar, incentivado por ótimos músicos. Aqui, teve início uma sucessão de articulações que chegou ao Ministério das Relações Exteriores, para conseguirmos um visto especial. Fui a uma loja na Praça da Matriz e comprei do bolso o enxoval para Jean Gerald – esse o nome dele. Cobertores, roupa de cama, travesseiro, sabonete, tudo para que ele pudesse se acomodar no alojamento. Talentosíssimo, teve um belo oboé cedido sob minha tutela pelo titular da 6ª Vara da Justiça Federal, Fausto de Sanctis, após busca e apreensão nos golpes de uma socialite de São Paulo. Todos torcíamos por Jean, mas a mente dele se dividia entre nosso país e seus familiares, seu apego à escola Holy Trinity (SSmª. Trindade) e… O vodu, que apenas agora revelo abertamente. Entre divindades como Agwe, Gédé, Bosou e Kalfou, em um dado momento Jean pareceu estar surtando. Com o oboé – comprado e cedido em comodato sob minha responsabilidade pela Justiça Federal – e a roupa do corpo, sumiu e foi parar no Acre, porta de saída para o Peru, de onde voltaria ao Haiti.

Sumiu, fizemos o devido BO de desaparecimento de pessoa e, junto, um de objeto, o oboé. Com a ajuda de dois franceses, um de São Paulo e uma voluntária do Médicos sem Fronteiras (Médicins sans Frontières) de Porto Príncipe, Jean foi localizado no Acre e convencido a voltar a SP, desatar os nós e voltar à sua terra: ser preso na fronteira seria o pior dos mundos. Apresentou-se, foi lavrado BO de reaparecido e deixou o oboé. Alguma força o fazia retornar ao Haiti. Era lá a terra dele, um “chamado”, parecia dizer-lhe, já meio fora deste mundo. Por nossa conexão francesa, soubemos que Jean viera a falecer em um incêndio criminoso em seu quarto na capital: sucumbira à punição macabra do vodu contra um “desertor” a caminho da liberdade.

Anos depois, fui homenageado na Assembleia Legislativa pelos Boinas Azuis, das Forças Internacionais de Paz da ONU. As FIP brasileiras já comandavam havia mais de dez anos as tropas da paz no Haiti, arriscando-se e levando víveres, remédios e algum conforto ao povo da ilha. Em 19 de dezembro de 2014, o Boina Azul Walter Mello de Vargas, presidente da ABFIP-ONU, entregou-me faixa, carteira de couro azul com o documento de associado e um carinhoso diploma que mencionava “atuação meritória” pela paz e a Cultura. Sem palavras.

Certo dia, peguei um carro da casa de minha mãe, no Rio, para o Aeroporto Santos Dumont. Conversa vai e vem, caímos no assunto Haiti e o motorista desatou a contar histórias de quando era paraquedista das FIP-ONU naquele país: voo rasante de helicóptero, tinha de saltar de frente, arriscando-se, caindo em pé de pouca altura. Ao fechar o sinal de uma rua, mostrei-lhe minha carteira de identidade com o brasão da ONU. Olhos arregalados, pediu licença, encostou o carro, leu aquilo e emocionou-se. No aeroporto, quis que eu ficasse no carro enquanto ele mesmo abria a porta e me recebia com uma continência.

O que será daquele país, pelo qual tantos de nós, sabe-se lá o porquê, temos uma estranha afeição? Penso que por muito tempo, continuará a longa sucessão de invasões, ditaduras sangrentas como a de Papa Doc Duvalier, guerras, terremotos, saques, epidemias de cólera e assassinatos como o de Jovenel Moïse e Jean Gerald.  Não há futuro para o Haiti.