Henrique Autran Dourado
Confesso que antes pouco dele sabia, só que era da TV, do cinema, dos anúncios, e uma figuraça. Não dava para não rir com a Dona Hermínia, sua personagem mais conhecida, sátira às mulheres do gênero, ao seu estilo mais irreverente. Fazia um escrachado retrato da classe média, melhor comediante do que os talk-showmen da moda –poderíamos chamar, lembrando a vanguarda do cinema do fim dos anos 1950, de “nouvelle humour”. Tinha uma verve cênica personalíssima e uma presença impagável, um “physique du rôle” (o físico do papel, como se diz em teatro) que seduzia o Brasil além do cômico. Comecei a prestar mais atenção no Paulo, para mim alguém novo despontando nas ribaltas, enquanto ele já escalava o pico de uma bela carreira com perspectiva de ir muito mais longe: uma investida internacional já se lhe esboçava naturalmente. Mas quem era Paulo Gustavo?
Um niteroiense que logo, como tantos, atravessaria a Ponte para o Rio, ou, lembrando a música: “só mesmo vendo como é que dói / (…) trabalhar em Madureira, viajar na Cantareira e morar em Niterói”. Pois logo aventurou-se em uma seara desafiadora, o monólogo, gênero em que o personagem deve interagir consigo mesmo, preenchendo a cena “de per si”, e superava-se. Assim foi com “Minha Mãe É uma Peça” (2013), trocadilho bem carioca de peça, como sinônimo de “figura” e uma encenação teatral. Foi seu primeiro grande sucesso, que puxou um livro homônimo, e logo um filme e as versões 2 e 3 da “Mãe”. Em 2020 estreou “220 Volts”, na TV Globo, em substituição ao programa “Profissão Repórter”. Crescia na plateia e nos bastidores ressuscitando um humor irreverente, sadio, algo como as chanchadas da Atlântida de Oscarito, Zé Trindade e Grande Otelo. Homérico era o pastiche da dona de casa com bobes no cabelo, as pernas longilíneas, atuação sempre espontânea e bem improvisada. Foi um ator de si próprio, e bem lhe cabia um predicado antigo: era uma pândega. E chegou a recordista de bilheteria do cinema brasileiro com “Minha Mãe É uma Peça 3”: incríveis 11,5 milhões de pagantes!
Nascido Paulo Gustavo Amaral Monteiro de Barros, manteve, sem artifícios, o duplo prenome, e, mesmo aspirando a fama, não buscou o modismo do falso charme diferenciador, ou a ajuda de algum numerólogo para ungir-se artisticamente Paullo, Gusttavo ou ambos. Gay assumidíssimo, encontrou sua cara-metade no dermatologista Thales Bretas, formalizando a união em 2015. Sonhando uma vida de casal para chamar de sua, a dupla teve, por meio de barrigas de aluguel, dois lindos bebês, Gael e Romeu. Materializava-se ali o sonho da típica mãe de classe média suburbana brasileira, a incrível Dona Hermínia.
No dia 4 de maio, Paulo deixou público e família, caindo vitimado pela Covid-19 após longa e inglória batalha, abraçado simbolicamente a uma torcida em seu favor que impressionava não apenas pelos números, mas também pelas demonstrações de carinho. Em seu legado, além e acima de tudo, grandes surpresas, como um lado até então praticamente desconhecido: naquele mesmo dia, o padre Júlio Lancelotti, conhecido por sua bandeira Pastoral do Povo da Rua, da Arquidioceses de SP, revelou que recebera de Paulo R$ 1,5 milhão para que fosse construído um hospital especializado no tratamento de câncer. Por tudo isso e muito mais, Paulo recebe e continuará angariando em retorno uma enorme admiração póstuma de fãs e personalidades brasileiras, torcida que continua a crescer em proporção impressionante. Sem os narizes torcidos dos homófobos de plantão, calados pela simpatia e carinho.
O ator tinha dinheiro suficiente não apenas para doar – como fazia no anonimato – vultosas quantiasde dinheiro a instituições beneméritas. Por isso, pôde internar-se para tratamento da doença no Hospital Copa Star. Recebeu o melhor em tudo, e até, última esperança, o chamado ECMO (sigla em inglês para Oxigenação por Membrana Extracorpórea), ou “respiração artificial”. Com o oxímetro em queda livre, o aparelho trabalhava diuturnamente na oxigenação sanguínea do ator. Mas não bastaram a melhor tecnologia, não foram suficientes as incontáveis preces, homenagens e mensagens nas redes sociais, e as declarações e juras eternas de seu companheiro Thales. Quis o destino levá-lo antes que fosse alçado a uma consagração ímpar, rara em nosso cenário artístico.
Um aspecto chama a atenção sobremaneira: Paulo e Thales, nascidos homens mas declaradamente bissexuais desde adolescentes, com seus lindos bebês a quem dedicavam carinho parental, ao menos não sofreram ataques dos carniceiros homófobos a querer-lhes os fígados ou dos que odeiam declaradamente aqueles que fazem uma opção diferente da sua, por motivo que não cabe aqui discutir para não cair no lugar-comum. Nem os palavrões de praxe, as piadas, as ilações grosseiras sobre a intimidade do casal, a alcova. Pelo contrário, um desfile de celebridades mostrou simpatia irrestrita, de Ludmilla a Caetano, de Marcelo Adnet a Elza Soares. O país já vem se acostumando a uma realidade muito antiga, que agora “sai do armário”: gente famosa como Lulu Santos, Nanda Costa e Daniela Mercury, por exemplo, que assume suas relações afetivas tal qual casais héteros. A questão que se coloca agora é a comoção causada pela partida do ator, sua generosidade como ser humano, o carinho demonstrado pelas pessoas e um afeto geral por sua mãe, consubstanciada na hilária Dona Hermínia, adorável caricatura brega das mães da classe média e média alta brasileiras, retrato das amadas mães de todos nós.