Um ciclo de vida pela cultura tradicional

O que era para ser apenas motivo de alegria e gratidão acabou redundando, no sábado passado, 30 de setembro, em emotiva e justa homenagem a José Pinto, artista cururueiro tatuiano, falecido na sexta-feira da semana passada, 29 de setembro, um dia antes de Tatuí receber o Ciclo de Cultura Tradicional.

Recepcionada ao ar livre na praça Manoel Guedes, junto ao Museu Histórico “Paulo Setúbal”, a iniciativa cultural do estado de São Paulo teria justamente Zé Pinto como um de seus destaques, encerrando a programação em disputa numa “batalha de rimas, brincadeiras e provocações” com os demais cururueiros do município.

Considerando ser o ciclo mais um projeto no sentido de resgatar e revalorizar a cultura tradicional de São Paulo, nas suas mais variadas vertentes e expressões, a perda de um de seus sustentáculos locais mais sólidos é algo ainda mais significativo, justificando plenamente o termo “irreparável”.

Em resumo quanto a eventos desse gênero, o objetivo maior é não deixar acabar uma expressão artística e, portanto, cultural, que representa a essência, a “raiz”, de uma determinada região, comunidade – ou seja, um traço fundamental da identidade de um “povo”.

E era exatamente isso que Zé Pinto fazia e seus colegas do cururu seguem promovendo: a sobrevivência de parte de “quem nós somos” como povo, como caipiras legítimos e, por isto mesmo, orgulhosos de nossa história, de nossa herança cultural e de nossas peculiaridades únicas.

O evento itinerante, portanto, responde com exatidão aos propósitos e atitudes de quem trabalha pela preservação desses valores essenciais.

O ciclo integra as Oficinas Culturais, programa da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativa, de São Paulo, gerenciado pela Poiesis (organização social de cultura) e dedicado à valorização e à reflexão sobre as tradições caipiras, indígenas, afro-brasileiras, caiçaras e migrantes que resistem no estado.

Na programação local, houve apresentação dos Seresteiros com Ternura, tradicional grupo tatuiano, coordenado por Maria Inês Camargo, com repertório composto por samba-canção, samba-choro, boleros, valsas, chorinhos e modinhas.

Em seguida, a Nossa Trupe Teatral apresentou uma intervenção narrando a simplicidade do cotidiano do interior a partir de personagens caipiras em uma modesta “venda”.

A exibição do documentário “Raiz e Alma – Um Registro da Cultura do Cururu em Tatuí”, com direção de William Lima, aconteceu na sequência. O trabalho mostra esse canto de improviso e depoimentos de cururueiros tatuianos e apoiadores que “lutam” para manter a tradição ativa na região.

Em seguida, Antônio Filogênio de Paula Júnior, diretor de educação e cultura da Casa Batuqueiro, mediou um bate-papo com a empreendedora do turismo rural e estudante de serviço social Cleonice de Andrade, o professor e pesquisador Jaime Pinheiro e o jornalista Ivan Camargo.

Ao final, os amigos cururueiros de Zé Pinto prestaram-lhe homenagem, em “verso e prosa”, contando muitas das histórias do mestre e executando algumas de suas obras.

“Lamentável e irreparável a partida desse grande expoente da música de tradição e raiz de nossa cidade”, comentou o diretor do Departamento Municipal de Cultura, Rogério Vianna, entre tantos amigos e admiradores de Zé Pinto.

Em novembro do ano passado, o Museu Histórico “Paulo Setúbal” promoveu uma homenagem ao cururueiro, com a apresentação musical “Compositor da Terra”, formada por músicas de autoria dele.

O projeto teve como intuito “valorizar as composições de ‘Zé Pinto’, para manter viva uma das mais importantes manifestações da tradição popular, a música caipira”.

José Pinto de Moraes (ou, Zé Pinto, como era chamado) nasceu em Tatuí, em 1º de junho de 1945. Passou a infância no bairro Pederneiras e, depois, mudou-se com sua família para o bairro Santa Adelaide.

Aos 17 anos, começou a escrever poemas, musicados em parceria com vários artistas e duplas caipiras, como Lourenço e Lourival, Cacique e Pajé, Tião do Carro e Santarém, entre outros.

Além de escrever cururu, começou a participar de eventos e festas desse gênero musical, do qual era expoente havia mais de 50 anos. Apresentou-se em rádios da cidade e canais de TV da região.

Em 1994, gravou um LP, que chamou de “O Melhor Cururueiro da Região”. Era integrante dos Cantariões do Cururu e casado com Hilda, desde 1970, com quem teve duas filhas: Rosemeire e Rosana.

A riqueza de seu repertório tem como destaque as músicas gravadas pelos artistas: Pedro Neves (“Meu Pedacinho de Terra”, “Ranchinho de Barro”, “O Prazer de um Roceiro”, “Um Caboclo Pacato”, “Minha Cabocla É uma Flor”, “Meu Ranchinho da Serra”, “A Vida de Matuto” e “A Viola e o Luar”), Orlando Barbosa (“Um Fazendeiro Gigante”, “O Velho e a Velha”, “Peão de Respeito”, “Uma História de Amor”, “O Pedido de uma Filha”, “A Família Camponesa”, “A Letra M”, “O Castigo de uma Mãe”, “O Chupa-Cabra”, “O Jovem Domador de Cavalos”, “Duas Namoradas”, “O Filho de um Pai Gigante”, “A Filha de um Mendigo”, “Minha Fofinha” e “Meu Pai Meu Herói”), João Miranda (“Ranchinho de Caboclo”, “Serenata”, “O Sofrimento de um Filho”, “Jeitinho de Princesa”, “Uma Vidinha Pacata”, “Minha Cabocla É uma Flor”, “Caboclo da Roça”, “História de uma Flor”, “Viola Sempre Viola”, “Casinha Triste”, “Nossa Gente da Lavoura”, “Lembrança da Roça”, “Ranchinho de Cipó”, “Nascimento de Jesus”, “O Meu Rancho Não É Feio”, “Ranchinho de Barrote” e “A Juventude de Agora”), Daniel Martins (“O Roceiro meu Irmão”), Marcos Violeiro (“O Caipira Genuíno”); Carlos Lima (“Minha Vida Meu Passado”), Diamantino (“Um Lindo Presente”), Tião do Carpo e Santarém (“Teca do Mundo”, “O Preto Velho” e “O Tico-Tico”); Zé Garoto e Dimboré (“Ditado Brasileiro”), Diogo e Leandro (“Bom Velhinho”), Cacique e Pajé (“Meu Orgulho É Ser Roceiro” e “Quem Não Presta Tem Valor”), Lourenço e Lorival (“Morena Sertaneja”), Adão da Viola e Irco Freitas (“A Imagem do Meu Pai”), Pedro Neves (“A Minha Potranca Raia”), Thiago Viola e Carlos Lima (“Um Peão de Palavra”), Marcelo e Monalisa (“Virgem Mãe Aparecida”), Romero Pereira (“Colar Azul” e “O Sofrimento de um Filho”) e Amaury e César Rey (“Último Desejo”).

Com tudo isso em conta, a vida de Zé Pinto, dedicada à arte, representa, também e literalmente, um “ciclo de cultura tradicional”. Por isso, não apenas a sobrevivência do cururu agradece, mas Tatuí, região e todo caipira consciente e orgulhoso! Aplausos ao mestre e salve a cultura tradicional!