Entre os músicos, a coerência política é qualidade nem sempre presente em suas relações com o poder público (mais precisamente, os nobres ou governantes de plantão). Nisso alguns de nós são favorecidos, é claro, pela reconhecida tendência do povo brasileiro à rápida perda de memória – e não é preciso cairmos em tentação ou conclusões radicais e de gosto duvidoso, como professava o imortal teatrólogo Nélson Rodrigues, que dizia que a massa é “ignara”, é burra. Exemplo desse tipo de camaleão político é certo regente mediano que conseguia se locomover como papagaio dos piratas entre as multidões que se comprimiam nos comícios das Diretas Já (movimento que, em tempos recentes mas também já um pouco esquecidos, brigava pela volta do sufrágio direto para presidente, acredite se quiser). Também havia colocado sua arte nas manifestações pela legalização dos partidos de esquerda, até o PCdoB, então proscritos, com a mesma desenvoltura com que, em passado nem tão remoto, animava com seus corais as festas comemorativas da Revolução de 64 (dos mesmos militares responsáveis pela extinção dos direitos de voto e de organizações e partidos de esquerda que ele depois defenderia com pátrio fervor). Gênero volátil, que sabe reger conforme a música.
Há casos de espertos apolíticos, distantes de rixas e, como o compositor de marchas carnavalescas Lamartine Babo (19041963), torcedor do América Futebol Clube do Rio de Janeiro, time para o qual compôs o hino oficial (“pois a torcida americana é assim…”). Sob pressão dos rivais, para que não o acusassem de proteger o próprio time com seu farto talento musical, Lamartine escreveu, entre outros, o hino do Flamengo (“Flamengo, Flamengo, sua glória é lutar…”), do Botafogo (“Botafogo, Botafogo, campeão de 1910…”) e do Fluminense (“Sou tricolor de coração…”). Detalhe histórico: a letra de Lamartine para o hino do Botafogo teve de ser mudada para “campeão de mil novecentos e sete”, em virtude de descoberta arqueológica que bons tempos depois apontou aquele ano como o do primeiro campeonato. Não é gozação, mas soou esquisito.
Por fim, não se pode confundir ecletismo com interesse: lá pelos idos de 1982/83, a cúpula do Bradesco mantinha, Cidade de Deus, uma espécie de laboratório para lavagem cerebral de famílias de bancários em Osasco, gueto pródigo em colaborações com organizações pararreligiosas e laços estreitos com o regime militar. Certa vez, aconteceu ali um concerto fabuloso. Revezavam-se como narradores o comediante Lúcio Mauro e a atriz Elizabeth Savalla, malvistos pelos artistas que não comungavam do regime de exceção sobre um palanque erguido em um parque tomado por um oceano de crianças “espontaneamente” arrastadas para aquela grande jornada cívica. A profusão de bandeirinhas do Brasil dificultava enxergar até mesmo o pouco que ainda havia de grama sobre o chão. Parecia coisa do Estado Novo, ou de algum daqueles famosos regimes europeus da primeira metade do século.
Entre arroubos cívicos, apologias ao poder instituído (e não constituído) e outras manifestações, uma sinfônica do interior apresentou-se sob a regência de seu incansável regente, em uma de suas intermináveis exibições, tão longas que quase wagnerianas. Depois daquele inusitado espetáculo cívico, como peixes fora d’água, os músicos da orquestra saborearam o tradicional lanche de água mineral com tangerina, sem saber o que foram fazer ali mas engolindo com apatia o azedume da fruta e o amargor da festa. Obrigações de funcionário público.
Assim como houve regentes de canhestras ligações políticas no passado, houve quem conseguisse apagá-las em prol de um futuro mais próspero e menos comprometedor. Da mesma forma, tanto quanto o punk Sic Vicious, que se automutilava nos palcos para deleite da plateia, há os que sensibilizam fãs fazendo automutilação simbólica, quase um endeusamento pessoal em prol de dividendos. A autoexposição do punk Sid Vicious é um outro viés, uma nova abordagem da compaixão alheia. A qualidade musical passa a não render tanto como uma espécie de São Sebastião, mártir francês do terceiro século perseguido por Diocleciano, imperador de Roma. Amarrado a um tronco, Sebastião foi flechado várias vezes, tendo seu rosto sido retratado com expressões entre fé e sofrimento nas antigas ilustrações. Entre essas figuras do punk-rock e as dos clássicos que expõem sua dor há quase que um reverso do espelho, ou seja, o espectador vê o que deseja ver, seja o sofrimento real ou o virtual.
Regente é quem está regendo, lembro pela enésima vez, e maestro é o mestre. Um que faz sucesso com suas habilidades de showman sem se meter em política e pouco regendo é o holandês André Rieu. Adepto da chamada “easy listening”, só rege valsas de Strauss como O Danúbio Azul e música popular romântica e melosa. Como violinista, não passaria em uma prova para a OSESP. No entanto, respeitando o gosto de cada um, tem grande espaço na mídia e atrai multidões mesmo cobrando ingressos caríssimos. Seu passado parece ser limpo, sem ligações políticas duvidosas, a não ser quando precisa “vender seu peixe”, com legalidade.
Creio apenas que se excede ao apresentar crianças-prodígio, ‘candidatos a Mozart’, o que também arrebata plateias – muito embora os infantes sejam comparáveis, para dizer o máximo, a pencas de crianças talentosas de nossas escolas de música do Brasil. Com esses passes, emoldura seu espelho. Pois Narciso, como se sabe, acha feio o que não é espelho.