(Cont…) Maravilha arquitetônica parece ser, também, o Memorial da América Latina. Situado na Barra Funda,em São Paulo, o enorme complexo de formas arredondadas foi projetado por Niemeyer e custou uma fortuna em dólares aos cofres estaduais. Entrando nos aspectos musicais propriamente ditos do Memorial, continua a despertar espanto o fato de que (a exemplo do Centro Cultural e outros equívocos arquitetônicos) para sua construção governantes ou arquitetos parece terem se esquecido de consultar um técnico com conhecimentos de física acústica e elementos musicais ou, na falta desses, um músico ou alguém provido de certo bom-senso. Cascatas de dinheiro público foram consumidas nessas obras, inaugurando-se espalhafatosamente salas de espetáculo de características acústicas simplesmente medonhas. Nada contra Niemeyer, de quem devemos nos orgulhar por muitas obras. Para mim, a mais linda é a capela da Pampulha (oficialmente, Capela Curial São Francisco de Assis, de 1959), com obras de Portinari, um museu de arte em si, da fachada à via crucis interna. Curioso que Niemeyer, comunista e ateu convicto, tenha duas igrejas entre suas obras de grande criador: essa linda da Pampulha e a imponente catedral de Brasília.
Como não deveria deixar de ser, o palco do Memorial – que, supõe-se, foi feito entre outras atividades para abrigar orquestras, shows e balés – não é exceção à regra. Seria excelente para gravações de programas de auditório de TV. É que o palco fica no meio de duas enormes alas de cadeiras, os artistas exatamente entre elas.
Na primeira vez que lá pisou, à frente da Orquestra Sinfônica do Estado (Osesp), o maestro Eleazar de Carvalho brincou não saber se deveria reger de frente, dando as costas para a metade direita do público ou para a esquerda; terminou por colocar-se diagonalmente a ambas as seções da plateia, prejudicando o público. Essa, uma revolução impossível: já havia demorado alguns séculos para que algum tipo de disposição da orquestra sobre o palco e certos princípios acústicos fossem consagrados universalmente. (Após inúmeras experiências, recai-se em algumas variações do modelo antigo da orquestra clássico-romântica na construção de espaços modernos).
Assim foram gestados o Carnegie Hall de NY e o Boston Symphony Hall (aliás, o primeiro pensado por meio de física acústica, baseado nas teorias de um gênio chamado Wallace).No passado, já houve a mesma preocupação com o Opéra de Paris e o Gewandhaus, de Leipzig… Aqui mesmo no Brasil, em Manaus, no apogeu do Ciclo da Borracha (1900-1920) e em pleno Amazonas, foi erguido um belo teatro para abrigar as grandes companhias europeias de ópera no roteiro de suas passagens pelas Américas. Empresários e governantes, assim como em sua maioria engenheiros e arquitetos, no passado orgulhavam-se de sua sensibilidade de maneira especial.
O Teatro Santa Isabel de Recife, que foi concebido como uma miniatura doOpéra de Paris, teve seu telhado construído de forma a aliviar para o público o calor medonho que faz na cidade – para tanto, foram feitas algumas aberturas laterais na parte superior, de forma a permitir a passagem de correntes de ar. O problema é que junto com a brisa fresca entravam por ali toda sorte de “visitantes”, de andorinhas e pombos a morcegos. Em 1931, em sua única vinda ao Brasil, o venerável violinista Jasha Heifetz apresentava-se no Santa Isabel quando foi surpreendido pelo voo rasante de um daqueles quirópteros, que quase raspou-lhe rosto. Pálido e sem inspiração, parou de tocar e exigiu que devolvessem os ingressos ao público. A direção do teatro, em pânico, conseguiu convencê-lo de que o prédio seria evacuado, as luzes apagadas e os eventuais morcegos recolhidos, garantindo que depois de algum tempo não haveria mais um daqueles animais sequer. Após uma hora Heifetz voltou, executou com certa esperada frieza o restante do programa e, traumatizado, nunca mais voltou ao Brasil.
Já o violinista Lambert Ribeiro, antigo catedrático da Escola Nacional de Música e autor de diversos métodos, aproveitou a deixa do acontecido com Heifetz, e à primeira investida do morcego do Santa Isabel – quem sabe os bichos seriam amantes da melhor audição musical? – reagiu como Heifetz sem sê-lo: parou de tocar e gritou para os bastidores: “ou eu ou o morcego!”. A plateia, rapidamente: “o morcego, o morcego!”
Voltando ao auditório do Memorial, uma vez resolvido no tapa o problema da colocação da orquestra, restava ainda solucionar um outro maior, o de natureza acústica:em primeiro lugar, conjuntos musicais são organizados em função das características acústicas de seus Instrumentos. Em segundo, existe uma disposição tradicional dos naipes sobre o palco que leva em consideração princípios elementares, e ela vem sendo aprimorada através dos séculos, consolidando-se no romantismo e pouco mudando de teatro para teatro.
Por causa desses enganos, no Memorial o som das trompas (que, pela sua construção, é projetado para trás, uma vez que sua campana fica em posição invertida) parece demorar uma eternidade para chegar ao público. Instrumentos de som grave (bumbo,tuba, contrabaixos, trombones), que são geralmente distribuídos entre laterais e fundos para melhor se aproveitarem do espelho acústico das paredes dos auditórios, no Memorial se perdem indefinidamente,sufocados pelos agudos dos oboés, violinos, flautas e clarinetas – que parecem escapar, como fogos-fátuos,pelo vácuo do enorme pé-direito da sala. (Cont.)