“Acorda, amor / eu tive um pesadelo agora / sonhei que tinha gente lá fora / batendo no portão, que aflição / era a dura / numa muito escura viatura…” (Chico). Nunca fui preso, mas tive medo. Levaram amigos, parentes, conhecidos. Hélio Pellegrino, amigo de meus pais, escritor, psicanalista – suas armas eram a caneta e o divã –, morava perto de casa, no Rio, e seus filhos eram nossos amigos. Hélio havia se escondido em um apartamento, mas foi pego. Sua esposa, Maria Urbana, conseguiu uma audiência com o gen. Silvio Frota, chefe do Estado-Maior, conhecido pela sua arrogante grosseria. Tentando um afago no ego do general, Maria disse: “O senhor, como intelectual…”, ao que o comandante chutou uma cadeira e esbravejou “intelectual não! Sou homem de ação!”
Minha mãe já tinha tido seu pai, constitucionalista, preso e deportado pelo Getúlio, assim como seu avô. Mais tarde, vez do meu primo Frei Betto, em São Paulo. Para ela, ter alguém na família e amigos presos já não era novidade. Até que um dia o porteiro de nosso prédio no Rio chamou meu pai e disse que lá estava um sujeito, a ordem era encontrá-lo na calçada. Alertou minha mãe que parecia ter chegado a hora dele, e desceu. Um agente secreto “a caráter” o chamou para uma volta. Andando, disse a ele que havia recebido a missão de prendê-lo; conformado, meu pai falou que precisava de roupas. O sujeito disse não, não vou levá-lo, deixando meu pai surpreso. Depois resolvo tudo, disse o policial.
Diante de tanta benevolência, meu pai perguntou o porquê. O agente disse: “Lembra aquele sujeito que ficava na portaria do Palácio do Catete? Sou eu”. E continuou: “Minha filha estava desempregada, e eu lhe pedi ajuda para colocá-la em um emprego. O senhor logo me chamou mandando-a se apresentar no Iapetec (o extinto Instituto de Aposentadoria e Pensões), e ela tomou posse no cargo. Pois eu lhe devo muito, senhor, nunca o prenderia”. E foi-se, sem mais. O fantasma rondava intelectuais amigos, e prendia gente como Rita Lee, Bete Mendes e Carlos Heitor Cony, jornalista (hoje na ABL), preso nada menos que seis vezes, e o escritor Joel Silveira, duas. Passei a peneira ideológica nos meus livros, a pedido de meu pai, mas do episódio da voz de prisão só vim a saber depois, lendo um dos seus, pois ele havia guardado o segredo a sete chaves.
Medo tive, sim. Uma das amigas mais chegadas na PUC-RJ, Monica Tolipan, foi levada e passou 15 dias na “geladeira”, apelido da cela fria que torturava sem marcas. Voltou, despediu-se e saiu do país, vindo reaparecer muito tempo depois em Santa Maria (RS). Outra amiga, Maria Luiza, filha da professora de inglês, teve sua casa revirada e foi levada de camburão. Quem não temeria? Desde abordagens com fuzis nas ruas, recebi até ameaça do interventor da Fefierj (hoje Uni-Rio), o gen. Jayme Ribeiro da Graça, do Serviço Nacional de Informações.
Aquele regime de terror, para os alienados de hoje, sufocou a corrupção! Ledo engano, aquele foi o período dos maiores assaltos aos cofres públicos da história. Imprensa censurada, Judiciário manietado, Congresso pró-forma ou inexistente, grassavam agentes dos serviços de “inteligência” com chantagens e achaques. E que dizer de figuraças como o tenente-coronel Mário Andreazza, ministro dos Transportes de Costa e Silva e de Médici, responsável por duas das maiores obras de engenharia do país, a ponte Rio-Niterói e a rodovia Transamazônica, monumentais ralos de dinheiro quando licitação era “apenas um retrato na parede”, diria o Drummond. O processo licitatório teve alguns raros decretos, mas só foi sacramentado de vez pela lei 8.666/93. E mesmo assim, como é burlado!
Ministro da Justiça e mentor do regime, o gen. Golbery, com a posse de Costa e Silva, de quem era desafeto, foi brindado com a presidência de nada menos que a poderosa Dow Chemical, colaboradora do golpe de 1964. Golbery, generoso, “cedeu” ao americano Daniel Ludwig em 1967 uma área do tamanho do Estado de Sergipe para o devastador Projeto Jari, na Amazônia, e a reboque sérios prejuízos ambientais. O sucessor de Golbery no ministério foi Ibrahim Abi-Ackel, que se envolveu em um milionário esquema de contrabando de gemas preciosas, depois que o preposto Mark Lewis foi preso na alfândega dos EUA com 10 (hoje 22,5) milhões de dólares em gemas, em apenas uma de suas viagens. Sócio de empresa americana de pedras preciosas, Ackel transferiu fortuna incalculável para o exterior, mas, como de costume, saiu ileso. Eliezer Batista foi presidente da Vale do Rio Doce e comandante do Projeto Carajás, que envolvia Estados no Norte do país, fazendo imensa fortuna com transações de alto porte. Seu filho Eike entrou no mundo do comércio de mineração aos 24 anos, e ainda jovem chegou a ser um dos homens mais ricos do mundo. Ao “Fantástico”, da Globo, Eike disse que “cria riquezas do zero” (sic).
Houve ainda o estupro, mutilação e assassinato da menina Aracelli, de apenas oito anos, em 1973, por rapazolas filhos de altas autoridades (o livro “Aracelli, Meu Amor”, de José Louzeiro, sumiu, na época, mas hoje está à venda). O crime dos rapazes, entre eles um futuro alto cargo na República, foi abafado, e notícias só se sabia ouvindo rádios de ondas curtas como a BBC de Londres.
Hoje, nossas Forças Armadas são guardiãs da democracia e da Constituição. Mas os jovens que hoje pedem a volta daquele velho regime como “solução” não sabem de nada, nem querem saber. Querem apenas 15 minutos de purpurina.