Henrique Autran Dourado
Frase que o professor dos velhos tempos gritava quando percebia que a turma do colégio, com cara de paisagem, compreendia mal ou entendia lhufas do que ele estava expondo. Levando essas rachadas, hoje politicamente incorretas, aprendia-se, estudava-se muito para não se fazer de tonto ou ignorante em classe. O grego era um idioma tão distante que não dava para entender nada, os alunos não sabiam a dimensão do idioma e da cultura grega, que estão em tudo, alma de uma civilização. Agora, tantos anos depois – agora que sabemos! -, vale buscar o sentido de muitas palavras em suas raízes etimológicas (opa, olha aí, do grego “etymologia”, origem e formação das palavras). Pois não é que hoje dei de pensar em palavras de origem grega que bem definem nossas vidas, nosso psicológico, nossos sentimentos e até mesmo certas situações? E elas se tornam icônicas (do grego “eikónos”), até.
Meme é palavra que pegamos emprestada do inglês, e vem a significar “elemento de uma cultura ou sistema de comportamento, passado de um indivíduo para outro por imitação” (Oxford). E não é que em inglês a palavra vem do grego “mimema”, significando “imitado”, e o conceito foi introduzido pelo revolucionário biólogo inglês Richard Dawkins em 1976 (Britannica)? Pois a vida em sociedade tem muito disso, só que há que se distinguir entre o que é cultural, parte de nossas tradições, e o que é uma espécie de mimese, imitação. Não por acaso veio à lembrança um conto do livro “A Inglesa Deslumbrada”, do “tio” Fernando Sabino, em que ele relata uma conversa fiada e meio vazia em pleno voo Londres-Rio com uma inglesinha, sua companheira de viagem. Na falta de assunto, vez de ela perguntar: “é verdade que no Brasil existe o costume de se andar nu?” Sabino, ironicamente, respondeu algo como “sim, uns por tradição e outros por não terem o que vestir”. É isso: anda-se pelado por tradição de uma sociedade em particular, no caso a dos indígenas – certamente a origem da curiosidade da inglesinha -, ou por não ter dinheiro. Uma troça bem ao estilo do Sabino.
Do grego, mimese – “imitação ou representação da realidade” é o que acontece quando quero – ou queremos – copiar, se aplicarmos o conceito a pessoas. Mary Quant criou, na Londres dos anos 1960, uma saia tão curta que deram de chamar-lhe mini, minissaia (e depois, claro, a microssaia). “Pegou lá, pegou aqui”, assim como as calças boca de sino ou de cós baixo, modelo Saint-Tropez, nome do lindo balneário no sul da França que ditava o “dernier cri” – a última moda. O escritor português José Saramago, autor de “Ensaio Sobre a Cegueira”, Nobel de 1998 e comunista de carteirinha, disse: “O heroico de um ser humano é não pertencer a um rebanho”. Faz sentido, mas ele mesmo tinha de andar de calça e camisa social por costume de gerações ou por convenções de Portugal, um país ocidental como o nosso. De fardão, como se usa na coirmã brasileira, a ABL, ou terno, em situações formais, cá e lá.
Importantíssima é a catarse (do grego “khártasis”), que é o “processo de libertação ou purgação da alma e do corpo (…), estranho à essência ou à natureza de um indivíduo” (Michaelis), bastante comum no meio artístico. Vimos uma imensa catarse no Festival de Woodstock, tipo de evento em que os participantes, coletivamente, entregam-se à libertação ou purgação da alma e do corpo. Até grupos como os dos fanáticos seguidores do norte-americano Jim Jones, que em sublimação extrema de catarse coletiva foram levados ao suicídio em massa na Guiana, em 1978.
Em uma manifestação política recente, um homem, vestido de verde e amarelo, subiu no para-choque da frente de um caminhão, como se tivesse sido atropelado, e pegou uma breve carona com os braços abertos, segurando-se nos limpadores de para-brisas. Teve seus gloriosos 15 minutos de fama, como preconizava nos anos 1960 o ícone (de “eikón”!) da arte pop Andy Warhol – mesmo que uma fama anônima, se é que é possível. A cena, gravada em vídeo, viralizou até alcançar o exterior. Foi uma catarse particular, exibicionista.
Mas o recente show do manifestante não foi tão original como parece. Fez uma mimese bem-comportada de outro fato acontecido há oito anos, em novembro de 2014, e reproduzido nas mídias como se ele, sim, fosse uma imitação do manifestante de 2022. Explico: uma mulher para lá de pós-balzaquiana despiu-se na rua até a última peça, para surpresa dos transeuntes nas calçadas de um lugar tranquilo de Goiânia (G1, 21/11/14). Com algum esforço, subiu no para-choque e agarrou os limpadores de para-brisa (tal qual veio a fazer seu meme caminhoneiro oito anos depois), e seguiu carona daquele jeito. Não tinha motivação política, seriam só os tais 15 minutos de fama (que não passaram de três), talvez vingança contra um marido traidor, ou simplesmente “deu tilt” e surtou? Então o manifestante de hoje, ator do meme do ano, pegou carona no gesto da goiana de ontem? Exato.
Entre mimeses e catarses, gregos e troianos, buscamos compreender pensamentos, fatos e palavras e o filtro real é sempre a etimologia. Em “Dicas de Português”, publicado no G1, é possível encontrar uma lista tão simples quanto curiosa de palavras vindas do grego, com as devidas explicações, como em verbetes. Por exemplo: antídoto, arquipélago, bíblia, cirurgia, cartomancia, dinossauro, eutanásia, heureca, sarcófago… E creia, até xerox, de “kserós”! Pois se você um dia ouvir “por acaso estou falando grego?”, diga que sim, pois ao menos em parte é verdade.