A célebre frase do título, de autoria do pensador alemão Friederich Nietzsche (1844-1900), costuma aparecer aqui e ali em adesivos de automóveis, redes sociais e até cadernos de música – em tradução de tradução – como “sem música, a vida seria um erro”. (Por essas e outras, repito a máxima popular italiana: “tradutore, traditore” (tradutor, traidor) ou ainda aquela do literato franco-marroquino Tahar Bem Jelloun: “Les traductions sont comme les femmes. Lorsqu’elles sont belles, eles ne sont pás fidèles, et l’orsqu’elles son fidèles, elles ne sont pas belles” (as traduções são como as mulheres. Quando elas são belas, elas não são fiéis, quando elas são fiéis elas não são belas). Um certo reducionismo machista mas muito bem se aplicada à tradução de idiomas. Convém, no entanto, esclarecer que a frase do filólogo e pensador alemão, traduzida para o inglês, é “without music, life would be an error”. Porém, “erro”, em português, seria “mistake” em inglês, enquanto “to err” seria algo como andar ser rumo, sem norte, como em português “errante” (que anda sem destino, sem rumo, explica o “Houaiss”).
Nietzsche, autor da teoria da morte de Deus, do super-homem e outras, tornou-se próximo de Richard Wagner (1813-1883), autor de óperas fantásticas como “Tristão e Isolda”, “Tannhäuser” e “O Navio Fantasma”. Essa amizade alimentou ainda mais no compositor os sentimentos antissemitas, chegando a fazê-lo publicar asneiras como “O Judaísmo na Música”, embora esses sentimentos viessem camuflando seu grande conflito religioso e racial interior, coisas de que o compositor não conseguiu se livrar, uma das razões para tornar-se o compositor predileto de Hitler. Mas isso é outra história. O que interessa é o papel que Nietzsche destina à música, uma dimensão quase maior do que o próprio homem; Wagner, amigo e admirador, falava em “obra de arte total” (“Gesamtkunstwerk”): a ópera seria música aliada a drama, cenário, artes plásticas, literatura e poesia, completando assim o círculo das artes da época.
Mas o que interessa nisso tudo é o papel da música em nossas vidas. Desde o despertar, alguma geringonça como um celular pode fazê-lo tocando música; o telefone atende com toques personalizados, para diferenciar o indivíduo da massa ignara (o “povo ignorante”, como dizia provocativamente Nelson Rodrigues – 1912-1980). No carro, especialmente no trânsito dos grandes centros, um CD, um pendrive ou o rádio fazem relaxar a caminho do dentista. Na sala de espera, uma musiquinha de longe, muito longe, pode atrair a atenção de quem aguarda, fixando-se nela e se esquecendo do relógio, que teima em andar na mesma eterna cadência, pacientemente. Dentro do consultório, uma música renascentista, barroca ou um Mozart, daqueles bem suaves, fazem o paciente aceitar mais relaxado a anestesia, a temível broca ou a angustiante extração de um dente rebelde.
Se tudo correr bem, o cidadão pode ainda correr o risco de, ao sair, ser emparelhado por um daqueles ignorantes que, com o som a mais de 120 decibéis de volume dentro do carro, exibem toda sua força máscula imaginária, perturbando até quem anda com os vidros fechados, lançando sobre seu redor o poder letal de seus tweeters, woofers e bazucas, todos de alta capacidade destrutiva de neurônios e da capacidade neurossensorial – perda de audição, em bom português. Chegando ao trabalho, pode ser que uma boa música crie o ambiente para uma produção melhor, desde a rádio pública de São Paulo até internacionais, como a KDFC americana, ambas sintonizáveis pela internet. À noite, para diversão, talvez um concerto ou um bom show de MPB, choro ou jazz possam ser um caminho para uma boa distração. Porém, cuidado!!! Ao ser gentilmente convidado para um churrasco no sábado, você pode ter que sofrer até sair de mansinho, ao som “eunocóide” – diria o filósofo e teórico alemão Theodor Adorno (1903-1969) – de um sertanejo que nunca foi sertanejo, vozes gritadas de falsos “castrati” (do italiano, castrado mesmo, cruel prática do passado para impedir o crescimento da população dos necessários hormônios masculinos, como a testosterona, ainda antes da puberdade, fazendo com que os mutilados infantes mantivessem a voz infantil, feminina).
Há também o risco de alguém arriscar abatê-lo com um funk, funk que não é funk, como o sertanejo que é sem nunca ter sido. Não será aquela coisa dos anos 1970, que passou a designar não apenas um gênero musical, mas também uma dança e a cultura de tribos (no jargão) negras, envolvidos no ritmo e instrumental como o do grupo Sly and the Family Stone, sucesso em Woodstock, e que eu pude apreciar há muito anos no afamado Radio City Musil Hall de NY, um templo musical. Nem o funk do mítico James Brown, que jogou na mesma panela a soul music e o rock’n’roll. O lema de Brown era “free your mind and your ass will follow”, ou “liberte sua mente e seu traseiro seguirá”: mente e corpo em livre expansão. Ah, voltando, com as devidas escusas. Falava eu do perigo de ser obrigado a ser entupido por lixos sonoros, como o falso funk de Lady Lu, Mc Naldinho ou a mais recente Anitta. Desespero de causa. Quando convido alguém, desligo o som, a não ser que o convidado ou convidada queira ouvir alguma coisa, e, uma vez de acordo, curtimos algo em comum. Sei onde há música em bares e restaurantes, e no mais das vezes prefiro nem ir, se é a música quem vai me escolher, por crer que devo ser eu quem deve escolhê-la. Como diz um amigo, grande personagem do mundo musical ainda hoje, perto dos 90 anos: “Não saio de casa para ouvir porcaria, só gosto de desfrutar do melhor, bem tocado, bem cantado”. Não sou tão radical, mas sendo do ramo da música compartilho um pouco com a ideia (nada nietzschiana) de que a música também pode trazer grande sofrimento, quando é ruim.
Concordo com o grande Nietzsche, de quem tomei emprestada a frase que me serviu de título neste artigo. Acontece que, nos tempos dele, não havia lixo nessa quantidade, em veículos e mídias poderosas como a TV, os CDs, sons automotivos – pois que nem havia automóveis para portá-los, talvez apenas os imortais barqueiros de Veneza cantarolando em suas gôndolas. Por essas e outras, passa a fazer ainda mais sentido a frase “sem música, a vida seria um engano”, um “errar” permanente, sem rumo, como no soneto de Vinicius de Morais: “De repente, não mais que de repente / fez-se de triste o que se fez amante / e de sozinho o que se fez contente / Fez-se do amigo próximo o distante / fez-se da vida uma aventura errante / de repente, não mais que de repente”.