Sem medir febre com baioneta

Estivesse o Brasil em alinhamento à parcela sã e civilizada do planeta, jamais estaria reabrindo as atividades comerciais neste momento. Só que, tragicamente, não está, e por isto mais vidas serão abreviadas.

A ausência dessa sintonia, com ruídos a se avolumar dia a dia, são evidentes tanto pelo aspecto conhecido como “negacionismo” quanto pela crise econômica, que já existia e, agora, não tem como deixar de agravar-se ainda mais.

No campo do delírio, há a crença de que a Covid-19 é apenas uma gripezinha, curada com cloroquina, e pronto. (Isso se não for um imaginário vírus chinês, com o propósito de dominar a terra – plana).

Partindo de altas instâncias, as crenças paranoides acabam por contaminar boa parte da população, que menospreza o vírus e, assim, ajuda a disseminá-lo – além, óbvio, de forçar a flexibilização do isolamento social.

Por sua vez, a intensificação da crise inverte a mínima recuperação da economia, já em iminente recessão. Isto resulta em falências em cascata e desemprego crescente, o que também devasta a vida do cidadão, especialmente os menos privilegiados – a grande maioria, portanto.

Para piorar, o país parece ainda se manter em clima eleitoral, como se o pleito de 2018 não tivesse acabado, e isto quase na boca das urnas de 2020. Não seria por outra razão – senão por puro negacionismo – que o governo federal praticamente jogou a responsabilidade de cuidar da crise sanitária sobre governadores e prefeitos.

Novamente, estivesse o Brasil afinado com o mundo não medieval, caberia a um governo central comandar o enfrentamento à doença, com diretrizes e protocolos implementados a partir, estritamente, do conhecimento científico.

É certo ainda não haver unanimidade quanto aos métodos e tratamentos para melhor se enfrentar o novo coronavírus, porém, menos dúvida ainda há quanto a este trabalho ser melhor desenvolvido por cientistas, médicos e sanitaristas, ao invés de militares.

Guardadas as devidas realidades, seria muito estranho esperar que, em caso de o país entrar em guerra com a Argentina, por exemplo, fosse posto na frente de combate um batalhão de gente uniformizada de branco a agredir severamente os inimigos com seus ameaçadores estetoscópios…

Natural seria que, a partir do governo federal, estivesse sendo promovida a harmonia e a concordância entre todos os demais agentes de comando da federação, prioritariamente na área de saúde, para o enfrentamento à pandemia.

Como isto no país de hoje é tão utópico quanto a Terra ter o formato de uma chapa de isopor, o resultado é que o Brasil afrouxa o isolamento social exatamente no momento em que a doença ameaça mais vidas, com a tal curva de contaminação em alta e não em baixa, como ocorre onde os desafios não envolvem também questões políticas.

Contudo, na ausência de bom senso e sobra de oportunismo por parte de um comando central, a verdade é que não resta nada a governadores e prefeitos senão ceder à pressão pela reabertura das atividades econômicas, mesmo de forma diversa ao de países imunes aos extremismos delirantes.

Se, por um lado, a flexibilização assim ocorre em momento ainda impróprio, por outro, ela já se torna inevitável diante de tanta pressão de quem precisa trabalhar para pagar contas e da desorganização e descuido arrivista de quem deveria estar à frente do combate às crises sanitária e econômica.

Prova da inevitabilidade da flexibilização pode ser observada pelos números do desemprego em Tatuí mesmo. Conforme o Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), órgão da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, do Ministério da Economia, o mês de abril somou o fechamento de 565 postos formais de trabalho na cidade, fruto de 279 novas admissões para 844 desligamentos.

O setor tatuiano que mais sofreu com a queda no quarto mês do ano é o de prestação de serviços. A atividade econômica fechou 187 postos de trabalho em abril – resultado de 137 contratações para 324 demissões.

Na análise entre os 13 subsetores da prestação de serviços, o relatório mostra que apenas dois obtiveram saldo positivo: saúde humana e serviços sociais (mais 24); e atividades financeiras, de seguros e serviços relacionados (mais quatro).

Esse foi o segundo mês do ano com saldo negativo. Em janeiro, 17 postos de trabalho acabaram fechados na cidade, com 936 contratações e 951 desligamentos. Em fevereiro, os números subiram, e 232 novas vagas foram geradas.

A tendência de saldo positivo foi mantida em março, com cinco novos postos, fruto de 782 admissões e 777 demissões. Contudo, a queda no número de contratações e a alta das demissões, em abril, contribuiu de forma expressiva para o saldo negativo de empregos formais no primeiro quadrimestre do ano.

Conforme o relatório do Caged, de janeiro a abril, 3.026 trabalhadores foram contratados, enquanto 3.371 acabaram demitidos, o que resulta no fechamento de 345 vagas formais de emprego.

Uma vez que a perda do trabalho e da consequente renda também pode causar óbitos – como já deve estar causando, embora isto seja quase impossível de ser calculado em números -, o relaxamento da quarentena acontece e a população coloca-se em mais risco, sobre um fio de navalha mortal, tendo de equilibrar-se entre a possibilidade da doença e a penúria financeira.

Resta ao povo, lamentavelmente, não se esquecer deste momento, observar a postura de cada instância de poder, com seus respectivos expoentes à frente. Logo, não apenas haverá eleições, mas também a memória de milhares e milhares de vidas que não precisariam ser abreviadas, mas o foram.

Neste ponto, é fundamental reconhecer a coragem de quem não está fugindo às responsabilidades, mesmo que estas sejam impopulares e, a princípio, prejudiciais politicamente.

No mais, é apoiar quem efetivamente defende a democracia e ao menos saiba que não se mede febre com baioneta, mas se salva vidas com sistema de saúde eficiente e respeito à ciência.