Se por um lado Gioacchino Rossini (1792-1868) tinha enorme facilidade para escrever, por outro era extremamente preguiçoso. Compondo “O Barbeiro de Sevilha”, sua mais famosa ópera, certo dia uma página escorregou-lhe das mãos e foi parar debaixo de um móvel. Deitado na cama, não se deu ao luxo de levantar-se e pegá-la, chamou o criado puxando seguidamente a corda que acionava um sino lá fora, mas sem sucesso. Após um bom tempo, virou-se para o outro lado e reescreveu a página.
Rossini era um glutão assumido: “comer e amar, cantar e digerir são os quatro atos da ópera da vida”, dizia. Poderia ter sido protagonista de uma “opera buffa”, gênero cômico italiano que dominava. E tornou-se famoso, compondo pelos cotovelos – Tancredi, “melodramma eroico” baseado em uma peça de Voltaire, foi escrita por encomenda em menos de um mês. Mas foi o sucesso de “O Barbeiro” que levou Rossini a compor mais intensamente. A ópera repercutiu tanto que as apresentações prosseguiram por 21 temporadas, centenas de récitas. E são incontáveis as novas apresentações: o Opera Sense contabilizou 2.547 encenações pelo mundo na temporada de 2015.
“Cenerentola”, sobre a guerra entre bizantinos e sarracenos, foi escrita improvisadamente em apenas três semanas. “Guilherme Tell”, sua última ópera, obteve grande repercussão e ajudou a fazer de Rossini tão famoso na Europa que os franceses propuseram erigir-lhe uma estátua, orçada em uma pequena fortuna. Gozador, quando ficou sabendo Rossini disse que por metade daquele dinheiro ficaria no pedestal ele mesmo.
A produção do italiano era quase doentia: aos 37 anos já tinha composto igual número de óperas. Deprimido, enfadado pelo sucesso e sem perspectivas de subir ainda mais, quebrou a pena que usava para compor. Entregou-se à boemia, às viagens, aos restaurantes franceses, “a ne rien faire”, ou, bom italiano que era, “al dolce far niente”. Mais uma vez enfastiado dessa rotina, passou a dedicar-se a outro talento, a culinária. Inventava pratos com a mesma facilidade com que criava personagens. Cansado de viver de economias, direitos e glória, Rossini decide voltar a compor, e escreve obras pomposas como o “Stabat Mater” e a “Pequena Missa Solene”.
A última ópera composta por Rossini foi mesmo “Guilherme Tell”, cuja abertura foi usada, modernamente, em filmes de caubói, porque os arcos em “ricochet” (saltando três vezes na mesma direção para cá e depois para lá) lembram o som de galopes dos cavalos no faroeste. A partitura de “Guilherme Tell” havia sido prometida muito antes, mas Rossini não se prontificava a começar a compô-la, pois havia prometido que aquela seria a sua última – apesar disso, viveu 40 anos após terminá-la. Um crítico publicou no Correio dos Teatros que havia sido lançada à terra a semente da árvore cuja madeira serviria para a construção do piano que o compositor usaria para criar a partitura. E que pessoas não nascidas – porque os pais delas ainda não haviam se casado – poderiam, no futuro, ouvir tão preciosa obra.
Não se sabe se por causa dessa bravata, Rossini pôs-se a escrever, concluindo uma de suas obras-primas, “Guilherme Tell”, com libreto em francês. Foi um dos mais populares compositores da história, mas tinha medo da velhice e parece que escrevia para correr do ócio, do torpor e do tempo implacável. Legou boa parte de sua fortuna à prefeitura de Paris, para que fosse construída uma residência para músicos idosos – algo como o nosso mais recente “Lar dos Artistas” de Jacarepaguá, no Rio.
Em “A Ópera”, 9° capítulo da obra-prima “Dom Casmurro”, Machado de Assis conta que a vida é uma grande encenação na qual tenor e barítono disputam a soprano na presença do baixo e dos comprimários (papeis secundários). Isso, quando não são soprano e contralto que brigam pelo tenor (eu ouvi muito uma versão de músicos para este resumo da ópera: um tenor tenta “cantar” a soprano, mas baixo e barítono atrapalham a cena).
Machado resumiu o que acontece no mundo: Deus é o poeta, o compositor é Satanás, que havia subido ao Conservatório do Céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não concordava em ser precedido por eles nas premiações. Tramou uma revolta, foi derrotado e expulso do Conservatório. Tudo poderia ter passado ao largo, pensou o escritor, se Deus não tivesse escrito o libreto da ópera para depois dele abrir mão – a atividade não caía bem à sua condição de Altíssimo, refletiu. Satanás levou o manuscrito para o Inferno, compôs a partitura e usou-a na tentativa de se recompor com Padre Eterno, que se recusou sequer a vê-la. Por isso, quando certo dia alguém me perguntou o porquê das guerras, desgraças, tragédias, mortes, e questionou a existência de Deus – tão poderoso, Ele deveria evitar nossas desgraças, disse -, pensei em Machado e respondi: Deus escreveu o libreto, mas quem rege a ópera é Satanás.
Machado, o “Bruxo do Cosme-Velho”, foi guindado mundialmente ao panteão dos maiores escritores do mundo após recente publicação de livro com contos dele nos EUA. O NY Times considerou nosso gênio um dos nomes de vulto entre os escritores, “herdeiro dos grandes e inteiramente sui generis”. A Ópera de Machado não é apenas uma incursão na literatura, música e filosofia. Considero o texto uma boa resposta para os incrédulos e os que não enxergam de quem é a grande culpa dos males deste mundo: o próprio homem. A Deus não cabe consertar ou evitar todos os erros da humanidade, tragédias e guerras. Quando muito dá uma forcinha aos que pedem e realmente merecem.