Henrique Autran Dourado
O que leva alguém a pagar milhões por uma obra de arte? Esta é uma pergunta bastante comum, mas explicável se há algum nome ou sinal que a associe a alguém, alguma época, ou se tem um contexto histórico. Às vezes um nome basta: meu pai dizia que se o Rockefeller quisesse sacar 200 milhões de dólares no Chase Manhattan os encarregados entregariam o numerário em carros-fortes com suas equipes de segurança – e um belo champanhe para espoucar na entrega. Já se ele, meu pai, tivesse pedido para sacar dois milhões no caixa teria sido preso. A questão maior reside em quem assinou o cheque. E claro, não pensamos em qualquer um se falamos de Michelangelo, Rafael ou Da Vinci: essas obras são eternas, as melhores não têm preço.
Há dez anos, em um leilão promovido pela Philips em NY, a artista plástica brasileira Lygia Clark (1920-1988) teve sua obra “Contra Relevo (objeto nº7)”, de 1959 (55,5cm x 55,5cm x 5cm), vendida pela bagatela de R$ 8,12 milhões em valores de hoje. Um simples quadrado dividido em 4, sendo uma das partes branca e em relevo três pretas. Lígia Clark era a bola da vez. As obras podem ver seu preço variar com a idade – quanto mais antigas, grosso modo, mais valem. Mas creia, esta é uma regra imutável: ela poderá mudar sempre.
Os cinco violinos que alcançaram maiores valores foram o Stradivarius “Messias” (R$ 104 milhões, hoje), o Strad “Lady Blunt” (R$ 88 milhões), o Del Gesù “Vieuxtemps” (R$ 82 milhões), o Strad “Da Vinci” (R$ 80 milhões) e o Del Gesù “Kochanski” (R$ 52 milhões). Todos esses instrumentos têm os ingredientes certos para lançar os preços ao espaço em leilões: autor, perfeição da manufatura, “árvore genealógica” dos proprietários anteriores bem estrelada, beleza e som próximos à perfeição. São obras de arte de grandes gênios. Do mesmo jeito, para se ter a dimensão do valor de uma pintura, peça arquitetônica, mural, um conjunto histórico ou arquitetônico, é preciso certa cultura. O idiota nunca irá lhes dar valor, não tem referências, não lhe serve para nada.
No Brasil, quando penso em artistas plásticos imagino Portinari, Iberê, Di Cavalcanti, Tarsila, Brecheret, tantos excelentes artífices que carregam em suas obras o peso do nome! (Eventualmente, o peso em ouro…) Para simplificar o raciocínio: o piano Steinway branco que pertenceu a John Lennon vale uma fortuna, mas se fosse de um Zé-Mané valeria apenas o instrumento em si, se estivesse em ótimo estado, para chegar a uma paga razoável.
Relógio de mesa que é belíssima obra de arte é um precioso trabalho de Balthasar Martinot, mestre relojoeiro de Luís XIV, rico em detalhes desenhados por André-Charles Boule. Uma linda peça, doada de presente a D. João VI e trazida ao Brasil em 1808, ano da Abertura dos Portos. Além desses atrativos e elementos de apreciação do valor, existe apenas mais um relógio igual no mundo, o que o levaria à estratosfera num eventual leilão. Duas peças únicas! A segunda se encontra nos aposentos de Maria Antonieta no Palácio de Versailles, e é bem menor em suas dimensões, fazendo do “nosso” o “primus inter pares” – “primeiro entre iguais”. Uma joia de grandes medidas.
No malfadado dia 8 de janeiro, em surto de macaquice de imitação, um bando copiou os norte-americanos de extrema direita forjados por Donald Trump e Steve Bannon: a massa tresloucada avançou sobre os prédios dos três Poderes (Palácio da Alvorada, Congresso Nacional e STF) e causou os danos que pôde – houve quem chegasse a dizer “que lhe permitiram”. Foi-se o precioso relógio ao chão e o mentecapto ainda tentou quebrar com um extintor as câmeras de segurança que filmaram o ato de vandalismo. Claro que os prejuízos ao nosso povo e ao Estado brasileiro foram incalculáveis. O painel “As Mulatas”, de Di Cavalcanti, uma obra-prima do modernismo brasileiro, mural inspirado no estilo mexicano, mostrava em sua enorme pintura as nossas belas mestiças. Ao lado de Di, nomes célebres ao par de Brecheret, com sua “Bailarina”, e Marianne Peretti, com “Araguaia”, de 13,10 m x 2,45 m, um vitral incrível de 1977. (Para servir de parâmetro, “Bumba meu Boi”, também de Di Cavalcanti, é um painel de 5m x 1,90m avaliado recentemente em 20 milhões). Por aí se vê o nível do que foi violentado, além da nossa democracia.
Vamos tirar uma lição dos lamentáveis acontecimentos do dia 8 de janeiro em Brasília! Vamos ensinar que não há civilização sem ordem e, antes de mais nada, futuro para um país sem que tenha educação, cultura e arte. O embotamento cultural e a estupidez caminham de braços dados na contramão do progresso, encardem o país com sua água imunda, lançam dejetos orgânicos e intelectuais sobre obras de arte e memória, levam à destruição de uma relíquia, um relógio dos tempos de Luís XIV e D. João VI.
Fomos soterrados pela lama da estupidez pelos que, armados de ódio e violência, tentaram destruir riquezas e depredar alguns de nossos símbolos maiores, da democracia a patrimônio histórico de Brasília, já com 60 anos, arruinando, quebrando, rasgando, uma fúria bestial a ser registrada e exposta aos nossos filhos e netos, para que não seja esquecida. Mas, a despeito da leniência de alguns setores oficiais, do pouco caso e da desfaçatez de certos servidores da segurança, ainda somos um povo que ostenta dignidade antes de tudo. Os “santos guerreiros” da civilização e da democracia venceram o “dragão da maldade” e a horda de bárbaros. Mas é bom repetir: aquelas absurdas violações não poderão ser esquecidas, assim como o monstro: mesmo dominado, ele ainda respira.