Putin, Macchiavelli, Napoleão e a mentira

Henrique Autran Dourado

Chamada da manchete de capa do NY Times de 10 de março: “Cada vez mais isolada, Rússia intensifica ataques a civis”. Embaixo, um subtítulo: “Atingido pelas sanções, Kremlin acusa os EUA de ‘guerra econômica’”. Enquanto isso, no mesmo dia O Estado publicou a opinião do conceituado analista político Thomas L. Friedman – três prêmios Pulitzer -, com o título “Putin não tem saída, e isso realmente assusta”: “Espere até Putin compreender totalmente que as únicas escolhas que lhe restam são sobre como ele pretende perder: uma derrota mais rápida e menor, com pouca humilhação; ou uma mais prolongada e maior, profundamente humilhado”. Ou seja, ou perde ou perde, pensa Friedman. O problema é se a Rússia pode suportar e o quanto um vilipendiado Putin, com sua soberba, resistirá até o momento final.

Dois autores de épocas diferentes que refletiram sobre poder, guerra, invasão e ocupação: um, o diplomata, filósofo e historiador Niccolò Macchiavelli (1469-1527), por muitos tido como o primeiro cientista social. Nada a ver com a caricatura que fazem os que não conhecem sua obra: “maquiavélico”, aquele que é diabólico. Peguei na estante dois livros do florentino: “O Príncipe” e “A Arte da Guerra’. Do primeiro, gosto da edição da Martin Claret, com comentários de Napoleão Bonaparte, figura controversa mas grande entendedor da arte de guerrear. Com um estudo do Marcílio Marques Moreira – economista, professor e diplomata brasileiro.

Macchiavelli foi o funcionário mais alto da segunda chancelaria de Florença, um dos órgãos da administração republicana instaurada em 1494. Para ele, há dois conceitos principais: a “virtù”, “qualidade do homem que o capacita a realizar grandes obras e feitos (…), pré-requisito da liderança”, e a “fortuna”, que seria o acaso, o curso da história, o destino, a fatalidade. Segundo ele, “virtú” e “fortuna” são “os grandes polos da ação política”. Em “O Príncipe”, Macchiavelli trata dos assuntos por capítulos, começando por “As monarquias hereditárias”. De “As monarquias mistas”, tiro alguns trechos bem interessantes: diz ele que quando se conquista uma província com leis, idiomas (obs.: na Ucrânia há 12 oficiais) e costumes diferentes, é preciso muita sorte e habilidade para manter-se. Aconselha o novo governante a “fixar-se na província, fazendo-a sua residência. Isso tornará seu domínio mais firme e durável” (…), e “A presença do governante inibirá a ganância de seus lugares-tenentes”. Napoleão comenta em uma anotação bem ao seu estilo: “… nada farão que não seja por minha ordem, ou serão destituídos”.

E aqui Putin erra mais uma vez: “é preciso tratar bem os homens, ou então aniquilá-los” – por errar refiro-me à primeira parte da frase de Macchiavelli, “tratar bem”. Ao atacar uma maternidade ou uma mesquita, Putin revela apenas que é perverso, seu intuito primeiro é aniquilar. Segundo o britânico The Guardian do mesmo dia 10, UE e RU “congelam bens de oligarcas russos, como Roman Abramovich”, dono de R$ 155 bi declarados, uma casa de 1 bi e o time Chelsea, tudo com ares anticorrupção mas… batendo no futuro de Putin – o que denota uma das tendências descritas por Friedman (primeiro parágrafo deste texto): uma derrota “mais prolongada e maior, profundamente humilhado”. Macchiavelli, no 5º capítulo – “O modo de governar as cidades e Estados” -, diz que “quando se conquista um Estado acostumado a viver em liberdade e regido por suas próprias leis, há três maneiras de mantê-lo: arruiná-lo (…), ir nele habitar ou permitir-lhe continuar vivendo sob suas próprias leis”. Napoleão observou que já em seu tempo a primeira opção de nada valia, e que, quanto a arruinar, melhor seria tudo continuar como estava. Quanto à segunda, lá habitar, menciona a “Comissão Executiva, em Milão, de três adjuntos, como o meu triunvirato ditatorial de Gênova”. (Por aí, vê-se que o francês seria, no jargão popular, mais “maquiavélico” do que o próprio Macchiavelli).

“Aconselha-te com muitos sobre as coisas que deves fazer e comunica a poucos o que depois irás fazer”; “muda de resolução quando perceberes que o inimigo a previu” (MACCHIAVELLI, N. “A Arte da Guerra”. P. Alegre: L&PM, 2008). Em seu “Manual do Líder”, Napoleão Bonaparte anotou um grande número de curtos aforismas: “Os homens são aquilo que queremos que sejam”; “O homem superior não segue os passos de ninguém”; “O coração de um homem de Estado deve estar sempre à sua cabeça”; “A melhor maneira de manter a sua palavra é nunca dá-la”.

Ditado antigo, “na guerra, a primeira vítima é a verdade” serve bem a Putin. Em um artigo, “Putin e a mentira como arma de guerra na Ucrânia”, Brenno Grillo diz: “Nenhum país domina tanto a arte da desinformação – a “dezinformatsia” – com fins bélicos como a Rússia”. Putin emprega a mentira com tanta frequência que sempre convém fazer uma reflexão inversa para antecipar-lhe a estratégia. Joga sozinho, e talvez nem os mais próximos saibam de seus futuros passos.

Todo cidadão esclarecido deve estar razoavelmente bem informado, via publicações históricas, e sempre por especialistas de hoje. Há uma lógica perversa que tenta dividir as pessoas em compartimentos estanques, principalmente nas redes sociais. Alguns chegam a satanizar a vítima, a Ucrânia. Gente de mentes e “memes” curtos tomadas por pensamentos censórios. Livre pensar é só pensar, dizia Millôr Fernandes, e todos têm o direito de fazê-lo. Nunca seguir com os olhos vendados ideias manipuladas por terceiros.