Se eu tivesse de escolher entre tudo o que se escreveu em letra de música ou poesia sobre a separação, começaria pela saudade, lágrimas femininas gotejando na aquarela da maquiagem derretida. Leio Vinicius de Morais, mestre em criar até na forma “engessada” de 14 versos (linhas), o soneto, como no “da Separação”, brilhantemente musicado pelo maestro soberano Brasileiro de Almeida, o Tom Jobim, apaixonado pela vida tal qual o “poetinha”: “De repente do riso fez-se o pranto / silencioso e branco como a bruma / e das bocas unidas fez-se a espuma / e das mãos espalmadas fez-se o espanto…”. Só um gênio é moderno sobre formas clássicas, e ainda mais com rimas intercaladas! O sorriso que se transfunde em lágrimas, as mãos em palma… Tudo tão “de repente, não mais que de repente”. O “Poetinha” do amor, da ironia, da angústia, da alegria, era o personagem vivo de seus poemas, como no campestre “Soneto da Intimidade”: “… respirando o cheiro bom do estrume / entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme /… nós todos, animais, sem comoção nenhuma / mijamos em comum numa festa de espuma”. Eis o trovador zombeteiro, amante do bom uísque e das belas mulheres, que traduzia em versos até mesmo o urinar entre bichos: ele, o autor, humildemente celebra os animais com juventude pastoril, pois o pastoral é também fermento de sinfonias como as de Mahler e “6ª” de Beethoven!
Quem não queria ter composto “Adeus, vou pra não voltar / e onde quer que eu vá / sei que vou sozinho /… Tão sozinho, amor / nem é bom pensar / que eu não volto mais / desse meu caminho”? Claro, Edu Lobo, o amante que abandona mas quer voltar, “nem que seja só / pra dizer adeus”. O tempero musical é uma progressão cromática (cromo: cor) no baixo dos acordes (a linha tocada na corda mais grave, tangendo o som mais triste do violão), e que é fio musical que desvela a separação não resolvida, em lento caminho descendente, a passos pequenos, caindo vez e vez mais, sombreando o drama do jogo melancólico das palavras. De repente, a modulação para uma tonalidade maior traz um suspiro mais sereno, um leve sorriso de afeto na despedida: “Ah, como eu não saber / como te contar / que o amor foi tanto / e no entanto que queria dizer vem…” (E aqui surge novamente a melancolia da tonalidade menor. É comum o uso de tonalidades maiores como sugestivas de alegria, altivez, e as menores traduzidas em lamento, tristeza, tensões e relaxamentos próprios da arquitetura da composição).
Até mesmo nos textos bíblicos a morte é o símbolo maior da separação. Deste mundo para o desconhecido, da matéria para o reino imaterial, em que o espírito se dissocia da realidade temporal a caminho da eternidade. O que não teria sido a morte de Cristo, senão sua separação da Terra para a qual veio em missão, para depois juntar-se à direita do Pai? Bach (1685-1750) escreveu duas majestosas e longas “Paixões”, sendo minha favorita a chamada “Segundo Mateus”. Ali, narra a saga da perseguição, do sofrimento, do calvário do Salvador com uma longa música coral com solistas, dois coros e duas orquestras, entremeada de recitativos (as narrações do Evangelista), uma massa sonora tão grandiosa que parece poder, em um instante fortuito, levar o ouvinte incrédulo a encontrar a fé.
Já o exílio é a separação forçada da mãe-pátria, é uma morte lenta e doída que não tem meio nem fim. Gonçalves Dias (1826-1864) escreveu em sua “Canção do Exílio”: “não permita Deus que eu morra / sem que eu volte para lá / … sem qu’inda aviste as palmeiras / onde canta o sabiá”. O “Exílio” de Dias abriu caminho para várias paródias e alegorias, começando pela jocosa poesia do mesmo título do grande Murilo Mendes (1901-1975): “Minha terra tem macieiras da Califórnia / onde cantam gaturamos de Veneza /… nossas frutas são mais gostosas / mas custam cem mil réis a dúzia /… chupar uma carambola de verdade / e ouvir um sabiá com certidão de idade”. O irreverente Oswald de Andrade (1890-1954) já o havia feito à sua maneira: “… que saudades que eu tenho / da aurora de minha vida /… debaixo da laranjeira / sem nenhum laranjais /… da cocaína de infância…”.
O suave exílio, o da “Sabiá” (Jobim convenceu Chico de que o pássaro deveria ser mulher, e não palavra masculina, como querem os dicionários), “vou voltar, sei que ainda vou voltar / para o meu lugar /… vou voltar à sombra de uma palmeira / que já não há / colher a flor / que já não dá…”. Era uma época de metáforas em que a imaginação redesenhava as mensagens com criatividade, produto em falta nos dias de hoje nas prateleiras da vida. A “Sabiá” cantou o exílio político, na calada da ditadura, homenagem aos que tiveram de abandonar seus lares e pares em busca do resguardo de seu direito de ficarem vivos e livres. E com voz rouca canta o Chico, na música de Silvio Rodriguez: “Vivo en um país libre / cual solamente puede ser libre / en esta tierra en este instante /… Soy feliz, soy un hombre feliz / y quiero que me perdonen / por este dia los muertos de mi felicidad”.
(O título deste artigo se refere a dois trechos de uma das maiores composições de todos os tempos, “Tristão e Isolda”, de Richard Wagner. Não por acaso, em alemão, “Morte de Amor”, título do final da ópera, se diz “Liebestod”, como que a morte e o amor se fundissem em uma só palavra).
“In memoriam”: Autran Dourado, meu pai, escritor, pelos dois anos de falecimento completados no último dia 30.