Henrique Autran Dourado
“Uma incelença / entrou no Paraíso / adeus, irmãos / que é o dia do Juízo”. Cantiga fúnebre da tradição popular gravada por Dorival Caymmi, surge na versão musicada por Chico Buarque de“Morte e Vida Severina”, do João Cabral: “Finado Severino / ao passares em Jordão / e os demônios te atalharem / perguntando o que é que levas”. O Paraíso do retirante nordestino é cáustico, corrosivo, os versos narram que deste mundo Severino só levou “coisas ocas / como o caixão que ainda deves”.
O que seria o Paraíso?Talvez um estado puro de completude,moradia da paz. Ele faz contraponto com a miséria humana, o chão em que vivemos nesta Terra.Nas religiões, surge como ideia de recompensa para os puros, e os que purgaram seus pecados. Para algumas, trata-se de um lugar no alto; entre islamitas e cristãos revela-se como um alívio, libertação,estado de felicidade plena. Para os budistas, Paraíso e Céu são sinônimos, estados de plena elevação espiritual. Entre os Vedas indianos, é como se o corpo físico fosse incendiado para se transmudar em outro estado, acimada humanidade. A palavra veio do grego “Parádeisos”, de onde o latim “Paradisus”, que nos deu “Paradis”, em francês, “Paradiso”, em italiano, e finalmente, em português e espanhol, Paraíso.
Ingrediente que fertiliza poesias, a palavra ambienta Vinicius de Moraes, em “O Vale do Paraíso” (1933): “Quando vier de novo o céu de maio largando estrelas / (…) lá onde os pinheiros reacendem nas manhãs úmidas / lá onde a aragem não desdenha a pequenina flor das encostas” -lindos versos descritivos, suavemente puerismas contados com olhos adultos e terrenos. Para Manuel Bandeira, é Pasárgada, um lugar perfeito onde tudo funciona às maravilhas: “lá sou amigo do rei / lá tenho a mulher que eu quero / na cama que escolherei / (…) um processo seguro / de evitar a concepção / tem telefone automático / tem alcaloide à vontade / tem prostitutas bonitas / para a gente namorar”. Pasárgada é sonho terreno onde não existe pecado: satisfações mundanas, nada celestiais.
Terceiro livro e parte final de “A Divina Comédia” (1308-1320), de Dante, Paraíso conclui a trilogia da viagem que sai do Inferno e atravessa o Purgatório, que o antecedem.É a jornada final de Dante, conduzido por Beatrice, que simboliza a fé, em alegoria. O Paraíso é dividido em nove esferas, da inconstante lua até a última, “primum mobile”, os anjos. Pouco depois de terminar “A Divina Comédia” Dante morre, deixando a cruzada descrita em seu tríptico, uma das maiores criações da humanidade. Talvez tenha descoberto o enorme alcance que sua “alma mater”, sua “alma parens”, viria a significar para nossa Civilização – o que escrever depois dele?
Em “A Classe Operária Vai ao Paraíso” (1971), filme do italiano Elio Petri, o fura-greve Lulu Massa, interpretado pelo mestre do gênero, Jean Maria Volonté, não adere ao movimento paredista dos colegas da fábrica,e ao manobrar sozinho uma das máquinas perde um dedo. O acidente fez de Lulu não um grevista a mais, mas um revolucionário. O título do filme remete aos anos de chumbo de parte do mundo, e, segundo a Drª Marta de Aguiar Bergamin, da UFSCar, “o fetiche dá um parâmetro para a análise dessa trajetória relacionando a luta política com as dimensões subjetivas do trabalho” (em “E quando o Paraíso É uma Névoa? ‘A Classe Operária’ e o Fetiche”: Revista Aurora, 2017). O filme não aponta para um Paraíso, mas um fetiche que a fantasia dos operários criara de forma coletiva, sem necessariamente acontecer.
Aqui, por volta dessa época (fim dos anos 1960 e início dos 70), existiu o fetiche, sombra da luta armada à Sierra Maestra cubana, que com Fidel, Guevara, Camilo Cienfuegos e apenas mais nove incendiaram o mundo pós-1959. Criaram o sonho de uma sociedade igualitária, cujo combate no Brasil foi desculpa para inúmeras torturas,mortes e desaparecimentos.Em Cuba, 12 desceram a cordilheira para arrebatar um país inteiro cuja população era menor do que a da cidade de São Paulo- no Brasil,gigante pela própria natureza, não vingou. Com um regime de exceção instalado, criou-se uma desculpa esfarrapada para fechar Congresso, controlar a imprensa, prender por “crime de opinião” e censurar: a “pecha infamante de comunista” do “Manifesto” dava o tom.
A distorção proposital da palavra “comunista”era tão absurda que passou-se a tratá-la com ironia: depois de sair da prisão, a chamada turma do Pasquim resolveu vulgarizá-la, tornando-a anedota.Bem ao seu estilo, escreviam “fulano? Comunista igual a nós!” “Sicrano? Também”.O momento era propício para o regime criar uma espécie de macarthismo no Brasil. Nos EUA, a sanha persecutória no fim dos anos 1940 e durante os 50 tinha à frente o senador Joseph McCarthy:taxava seus adversários de comunistas, e os que divergiam da extrema direita de espiões soviéticos. A acusação era tatuagem indelével,como os números cravados nos braços dos judeus pelos nazistas.
Hoje, o que se vê no Brasil é um sonho modesto: viver em uma democracia, sem uma inflação que corroa 1,1% o poder aquisitivo em apenas um mês, como aconteceu em setembro passado, e,quem sabe, poder comer alguma carne. Sem quedas brutais no PIB e juros absurdos, com políticas ambientais que garantam o futuro das gerações. Sobrevive uma Constituição talhada com suor em 1988, arrimo de uma sociedade que se prometia livre e soberana. Não é Paraíso ou fetiche, mas um sonho bem vivo, sim,a ser garantido a qualquer custo, com todas as suas imperfeições.