Henrique Autran Dourado
“Le giorno se n’andava e l’aere bruno / toglieva gli animai che sono in terra / (…) ed io soy uno / m’apparecchiava para sostener la guerra”.
Assim Dante começa “La Divina Commedia” (“Il Inferno, Canto I”), poemas escritos entre 1308 e 1320. O sol nem raiava, a atmosfera cinzenta ainda cobria os animais na terra, e ele se preparava para a guerra. Escrito na primeira pessoa em três partes (Inferno, Purgatório e Paraíso), “La Commedia” está nos primórdios da literatura italiana e ajudou a consolidar a língua toscana e os padrões do idioma do país. Dante é o personagem que se prepara para a guerra.
Da Grécia, são famosas as guerras de Troia (1250-1240 a.C.), as Médicas (de Medas, entre gregos e persas, de 499 a 479 a.C.), a do Poloponeso, entre Esparta e Atenas (431-404 a.C.), e as de Alexandre, O Grande (334-323): o cerco a Tiro e as batalhas de Gaugamela, Górdia, Granico, Hispades e Isso, onde o macedônio venceu Dario III, rei dos persas. Entre as guerras romanas, as Samnitas (264-290 a.C.), as três Púnicas (264-146 a.C.), as Macedônicas (215-168 a.C.), a dos Três Reinos da China (220-265 a.C.), a dos Oito Príncipes (291-306), a de Gália (58-50 a.C.) e a invasão das Ilhas Britânicas (43 a.C.).
A Era Cristã viveu inúmeras guerras e invasões, como a tomada da Península Ibérica pelos muçulmanos (711), a da Normanda (1066), a longeva série de Cruzadas (1096-1231), um sem-número de enfrentamentos cujo bordão era o poder: conquista e domínio de riquezas, religiões e raças. Sobre esse poder debruçou-se um dos primeiros teóricos, Niccolò Machiavelli (1469-1527), em “O Príncipe” e “A Arte da Guerra”, sabedoria mais tarde compartilhada por Napoleão Bonaparte (1769-1821) em escritos sobre o florentino, e em “Manual do Líder”. Mas se prosseguirmos com as guerras napoleônicas (1792-1814) não haverá espaço para o assunto principal. Saltemos ao expansionismo russo via União Soviética e as duas guerras de proporções mundiais, uma de 1914-1918 e a segunda, entre 1939 e 1945, que envolveu quase o mundo inteiro ante o nazifascismo de Hitler e o fascismo corporativista de Mussolini.
Outubro de 1999. Eu lançava, na Adusp (Associação dos Docentes da USP), um livro sobre a história da música contada de um jeito irreverente, enfastiado que estava com o árido trabalho de doutorado. Ao meu lado, o argentino Osvaldo Coggiola, professor titular de História, lançava o livro “Imperialismo e Guerra na Iugoslávia – Radiografia do Conflito nos Bálcãs” (SP: Ed. Xamã, 1999), assunto do momento. Coggiola buscou fatos que fincam raízes no passado que nos levam a compreender até outros mais recentes. Ponderou muito bem que os conflitos na Península Balcânica, que envolveram 13 países, assemelhavam-se aos tempos que antecederam tanto a primeira quanto a segunda guerras mundiais, sendo os protagonistas decisivos do século EUA, Europa e Rússia. Um elemento precioso: os países mais poderosos na luta pelo domínio do combustível fóssil, o ouro negro, petróleo. Depois da exposição de Coggiola refleti que o protagonista era, sim, o óleo – aos EUA, Europa e Rússia cabiam papeis de comprimários naquela ópera do Inferno.
Na virada para 2020, Donald Trump mata, por pontaria certeira ou por acaso, entre vários outros, o general Qassem Suleimani, líder da Força Quds, o segundo homem mais poderoso do Irã, um radical amado pelo seu povo. A morte de Suleimani despertou a ira do Aiatolá supremo, Ali Khamenei, e expôs o mundo ao extremo perigo: haverá revide, mas, diz o estudioso Chales Lister, só não se sabe quando, como e aonde (a exemplo do bombardeio da embaixada dos EUA em Bagdá e a inédita ordem de expulsão das tropas americanas no Iraque). Outro estudioso, Bruce Riedel, ex-agente da CIA especializado em Oriente Médio, é mais pessimista: a guerra que os EUA estão iniciando será “uma guerra maior do que nunca”. Segundo David Sanger, do The New York Times, em 2015 Trump abandonou o acordo nuclear, o que, na calada, deixara o Irã à vontade para retornar às poderosas armas letais de médio e longo alcance.
No momento em que escrevo, 3.700 soldados norte-americanos estão no olho do furacão, de um total de 70 mil no Oriente Médio. Não se sabe a modalidade da guerra que já assusta, há apenas a bandeira da morte de um radical adorado pelos xiitas cujo cadáver, ainda fresco, desperta manifestações e gritos de “morte aos Estados Unidos”. Mas esse ódio será restrito a uma guerra que afete o país, o Iraque, o Kuwait ou veremos algo de proporções desconhecidas? (Gilberto Gil teve seu pesadelo, em 1967, em Lunik 9: “Guerra diferente das tradicionais / guerra de astronautas nos espaços siderais”).
Observo três vetores no ataque a Bagdá e no inchaço dos contingentes americanos no Oriente Médio: primeiro, o petróleo; segundo, o impeachment de Trump em pauta no Senado – não provável, mas parte das intenções do presidente. Alimentado pelo ufanismo e engordado após um século de guerras sangrentas, grande parte do povo deverá estufar o peito em defesa de Trump, lançando areia sobre os olhos de muitos. “Last but not least” (por fim, mas não por último), o terceiro vetor: este é o ano em que Trump buscará a reeleição. É nesses meses de corrida que ataques costumam vitaminar fortemente a popularidade presidencial, mas o que costuma se seguir, ao fim, é uma queda vertiginosa – e a derrota. Um salto espetaculoso no escuro, sem paraquedas e arrastando o mundo,
*ALIGHIERI, Dante. “La Divina Commedia”. Ostiglia: Ed. Mondatori, 1963.