Pai, pater

Em uma rede social, surgiu uma discussão sobre o uso da expressão “nossa pátria”. Houve quem sugerisse até mesmo um absurdo: “mátria”, na contramão da onda machista que assola o país. Mas pátria vem do latim “pater” (terra, solo), e só passou a significar “país” na Idade Média. Alguns torcem o nariz também para patrimônio, embora a palavra deva sua origem à parte da terra (pater) de cada um, ou seja, sua propriedade. Patrimônio vem daquilo que na antiguidade se referia a propriedade (terra), e não ao homem, o macho. Já “mãe” veio de “mater” (vida, em latim). “Pater” e “mater”: terra e vida, assim como Adão e Eva, em hebraico. No Código Civil brasileiro, “pátrio poder” é a coleção de direitos e deveres de ambos os pais (homem e mulher) sobre filhos menores. Não sabem os mais afoitos que Adão e Eva, que em hebraico também significam terra (Adamah) e vida (Avaah) são simbolizados por aquela moça de longas madeixas (à frente de uma árvore com uma serpente enrolada), a mostrar na mão o fruto proibido sob o olhar curioso de um rapaz, ambos com suas partes “pudorentas” cobertas apenas com folhas de plantas, momento do pecado original, entre os cristãos.

Dessas palavras surgiu uma das mais essenciais figuras familiares, que nos deram vida pela conjunção pater-mater, a terra que fertiliza e faz gerar a vida. Todos os homens e mulheres tiveram e terão pai e mãe, mesmo que técnicas modernas possam fazer a mulher conceber sem conhecer o pai de seu filho, seja pela fertilização “in vitro” ou a “barriga de aluguel”, avanços da ciência.

Lembro ainda um neologismo, tanto no jargão médico, da genética, familiar ou jurídico: o pai não biológico, aquele que não participou da conjunção carnal para a concepção, apenas assumiu o papel de pai de um filho, muitas vezes com enorme esmero, tornando-se pai de filhos por toda sua vida. O pai adotivo, que assume o papel paternal ao lado de uma viúva, ou talvez de uma mulher abandonada por seu parceiro, aquele que adota uma criança ou ainda o padrasto, podem ser fiéis pais de coração. Pai é quem cria, no final das contas, com dedicação e esperança, os filhos que deverão continuar a missão de povoar o mundo, em nome da permanência da espécie.

“Pai”, canta Chico Buarque em “Cálice”, “afasta de mim esse
cálice / afasta de mim esse cálice / de vinho tinto de sangue”. Uma brincadeira inteligente entre o cálice (calix) sagrado e o “cale-se” imposto pelas ditaduras. O pai católico é protetor à semelhança do bom Deus, Pai de Cristo. “Pater Noster quio est in ceali, santificetur nomen tuum, Fiat volunctas tua sicut in celo e in terra”: a oração católica maior ao Pai, que pede perdão por dívidas e ofensas, o Pai que traz o pão de cada dia, durante toda a vida até o inevitável fim.

O Pai, para Lutero, concede e pune, ele é ao mesmo tempo bom e rigoroso. A oração matinal do religioso alemão diz: “Agradeço, meu Pai do Céu, por meio de Jesus Cristo, Seu querido Filho (…). Porque em Suas mãos eu me entrego, meu corpo, minha alma e todas as coisas. Deixe comigo Seu anjo sagrado, e que o mal inimigo não avance sobre mim. Amém” (trad. livre). Lutero teme o mal que é ameaça, e pede que o Pai faça este sucumbir. O Pai-nosso católico pede diretamente a Deus. Já Lutero ora ao Pai por intermédio de Cristo. (Ora, como em “ora pro nobis” e não reza…).  

Todas as religiões monoteístas, incluindo aí o judaísmo e o islamismo, fazem referência e reverências ao Pai; em todas elas, ele é o Senhor, e este é sempre o bom Pai. Alá (Allãh) é o nome de Deus, em árabe, e Maomé seu último profeta, que ditou os preceitos do Islã. Os que seguem o islamismo são chamados muçulmanos. Muçulmanos, assim como os judeus, consideram Cristo um dos profetas. Dirigem suas preces diretamente ao Pai, divindade máxima, infinita e única. O judaísmo também é uma religião abraâmica, e teve em Moisés o introdutor de suas leis, dos mandamentos e do Torá, sua bíblia sagrada. “Ouça, Israel, Adonai, nosso Deus, é único”. Não há ninguém além dele. A conversa dos judeus é com o Pai, seguindo preceitos religiosos que estão entre os mais antigos e intocáveis de nossa civilização.

O grande pensador francês do iluminismo Voltaire (1694-1778) propôs que “se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo”, querendo dizer que sim, ele próprio cria em Deus, mas se alguém tivesse êxito na tarefa impossível de demonstrar a inexistência divina, a humanidade precisaria criá-lo. Até mesmo os ateus, para muitos, somente o são por não terem descoberto a Deus – por ironia, diz-se que também são filhos de Deus. Mais Chico Buarque: “… e eu que não creio, peço a Deus por minha gente / (…) que vontade de chorar…”.

Fiz essa digressão para abordar alguns pontos bem básicos (não sou especialista na matéria, sou apenas um curioso incansável) para minha conclusão. Ela é o leito onde deito a reflexão deste artigo, no momento a que nos remetemos neste dia exato do ano aos nossos pais. Dos pais conhecidos e desconhecidos, dos que desapareceram nas guerras ou sob coturnos e torturas, e as vítimas de crimes. Dos pais exemplares aos que são pouco presentes, mas que lá têm alguma virtude. Aos nossos filhos homens, quando forem pais, e aos filhos deles, pais de tantos outros futuros pais, e assim por diante até o final dos tempos (será, então, quando nos encontraremos todos, pais?). E especialmente aos pais que hoje, por uma razão ou por outra, ou por desígnio impenetrável de Deus, não puderam comparecer para nos confortar com sua presença.