Os escravos hebreus e os cortes na cultura italiana

Verdi não teve muita sorte desde que nasceu, em 1813, em Roncole (hoje Roncole-Verdi), na província de Parma, Itália, ocupada por Napoleão – por coincidência, o mesmo ano em que veio à luz Richard Wagner. Um, para glória dos italianos, o outro para júbilo dos alemães. Carlo, pai de Verdi, e Luiza, a mãe, por medo batizaram-no Joseph Fortunin François Verdi, prenomes bem franceses. Passou a assinar Giuseppe apenas mais tarde, assumindo de peito aberto sua nação. Estudava e tocava órgão na Igreja de Roncole desde os 12 anos de idade, mas não estava preparado o suficiente para, alguns anos depois, conseguir ingressar no disputado Conservatório de Milão. Continuou a estudar e compor, e aos 20 anos escreveu a ópera “Oberdo, Conde de San Bonifacio”, um rotundo fracasso.

Em 1840, Verdi amargou o infortúnio da encefalite viral que vitimou sua mulher e dois filhos. Agarrando-se ao que lhe restava, a música, compôs “Um Giorno di Regno” (Um Dia de Reinado), “melodramma giocoso” que igualmente não vingou – sinal de que o gênero não coadunava com seu perfil: um patriota e humanista, cheio de ideias. Não desistiu, e finalmente alcançou seu momento de glória com “Nabucco” (1841), ópera em quatro atos sobre um libreto que lhe caíra às mãos como uma bênção: “Nabuchodonosor”, de Temistocle Solera. Com o texto, partiu para Milão imbuído de verdadeiro espírito patriótico, chegando a engajar-se no “Risorgimento” de Giuseppe Garibaldi, líder do movimento pela unificação e independência da Itália. Entre outras óperas, alcançou grande fama com “Rigoletto, Macbeth” (que o fez merecer o apelido de O Shakespeare da Ópera), “Il Trovatore”, “Aída” e “La Traviatta”, além de uma ópera cômica, “Falstaff”, e o grandioso “Requiem”. Mas é com “Nabucco” que vou desenvolver este texto.

Verdi estreou parceria musical e se apaixonou por Giuseppina Streppone, soprano do La Scala que viria a atuar no papel de Abigaille, então já casada com o compositor, na estreia de sua ópera “Nabucco”. É um drama de sentido claramente político, inspirado no Salmo 137 (“Pelos Rios da Babilônia”) e textos bíblicos de Jeremias e Daniel, passado em 487 a.C., na Babilônia e Jerusalém.

Os hebreus faziam suas preces, enquanto as forças babilônicas atacavam. Fenena (mezzo-soprano), filha mais nova do rei Nabucco, é tornada refém. Abigaille, suposta filha mais velha de Nabucco, invade o templo com soldados da Babilônia, mas Zaccaria (baixo), rabino líder dos judeus, ameaça de morte a prisioneira Fenena, filha caçula do rei.

No terceiro ato (“A Profecia”), Abigaille, já rainha da Babilônia, vê Nabucco chegar para reassumir o trono, dizendo ter provas de que ela na verdade não era filha dele, e sim uma escrava. Em “Às Margens do Rio Eufrates”, segunda cena do ato, o rabino Zaccaria exorta os hebreus a terem fé porque Deus destruiria o inimigo, a Babilônia, e eles enfim rumariam à sua terra. Nesta cena acontece um dos coros mais lindos e emocionantes da história da música: os escravos hebreus entoam “Va pensiero, sull’ali dorate” (Vá, pensamento, sobre as asas douradas), logo um segundo hino nacional italiano, cantado em ocasiões especiais.

(Até aqui entre nós, como certa vez, em 1992, na Câmara de SP, em votação de interesse dos Corpos Estáveis do Theatro Municipal, o maestro e amigo do coração Mario Zaccaro, da galeria, ergueu os cantores presentes para um lindo “Va pensiero”. Levantou-se também o plenário, parlamentares voltados para a plateia admirando a apresentação até que, ao final, todos – vereadores, coro e plateia – aplaudiram com vigor. A lei passou por unanimidade).

“Vá, pensamento, sobre as asas douradas / vá, e pousa sobre as encostas e colinas / onde os ares são tépidos e suaves / com a doce fragrância do solo natal!
(…) Ó, minha pátria, tão bela e perdida! / Ó, lembrança, tão cara e fatal! / (…) Reacende a memória no nosso peito / fale-nos do tempo que passou! / (…) Traga-nos um ar de lamentação triste / ou que o Senhor inspire harmonias / que nos incutam a força para suportar o sofrimento”.

Um outro brilhante fato recente, eivado da vocação política dos italianos, aconteceu na Ópera de Roma em 12 de março de 2011. O grande maestro Riccardo Muti regia a ópera “Nabucco”, quando, terminado o “Va pensiero”, fez gestos para que plateia, orquestra e coro silenciassem. Fato inusitado durante apresentações de óperas, Muti virou-se para o público, e depois de ouvir um solitário “viva l’Italia!”, repetiu a frase, encadeando uma digressão sobre o quanto toda a vasta cultura italiana era importante. Lembrou os versos “minha pátria, tão bela e perdida”. Com discrição, referia-se aos cortes na área cultural que estavam sendo impingidos pelo governo de Silvio Berlusconi – uma gestão permeada de escândalos, subornos, corrupção e até pornografia, cenas com uma adolescente de apelido Ruby: o “affair Rubygate”.

Mas as cortinas do grande drama da noite ainda estavam por ser descerradas. Depois do discurso, Muti anunciou um bis de “Va pensiero”, e pediu aos presentes que cantassem junto. Inflamada por intensa emoção, a plateia, de pé, irmanou-se ao coro, atirando seus programas de concerto do alto da última galeria e balcões, uma festa esvoaçante e cheia de lágrimas, tanta emoção que nem o coro se conteve.

Pressionado pela sucessão de escândalos, o primeiro-ministro Berlusconi renunciou em 16 de novembro de 2011, oito meses após aquele histórico “Va pensiero”.