Seja em nosso folclore, no de outras regiões ou países, seja na música clássica, popular ou de vanguarda, a fauna sempre está presente. A associação entre animais e música surge tanto pelo som quanto pela aparência de um instrumento, pela forma da obra ou pela técnica de composição. Caranguejo, do latim “cancer”, o crustáceo, dá nome a uma dança do fandango do sudeste brasileiro. E é também um tipo de composição canônica – do latim “canon”, que quer dizer regra, cujo uso vem de meados do século 13. Vozes de uma mesma curta melodia vão ingressando em compassos diferentes, até que elas se entrelaçam em uma cantilena sem-fim, como na conhecida brincadeira infantil “Frère Jacques”.
Cobra é uma dança do fandango paulista em que homens e mulheres, organizados em sinuosas filas (de onde o nome da festa), dançam, sempre acompanhados por violas caipiras e violões. Gilberto Gil canta “Procissão” em sua religiosidade sincrética – ora católica, ora umbandista, como bom baiano -, lembrando o andar sinuoso do réptil: “Olha, lá vai passando a procissão / se arrastando que nem cobra pelo chão / e as pessoas que nela vão passando / acreditam nas coisas lá do céu”. O serpentão (em francês “basson serpent”, ou “basse-cor”) é um instrumento de sopro derivado do corneto, criado na França do final do século 16. Tinha voz grave e formato de “S”, reforçava a voz dos baixos nos coros das igrejas e caiu em desuso no século 19.
“Pedro e o Lobo” é uma obra sinfônica brincalhona e didática de Sergei Prokofiev (1891-1953) cujos personagens são Pedro (violino), seu avô (fagote), o ágil gato (clarineta), o passarinho (flauta) e o pato (oboé). E os caprinos? No Brasil, bode não é coisa boa, pode ser a ressaca de um porre, um azar ou coisa ruim, como cantou Macalé nos anos 1970: “Se amarrar algum bode eu mato / se amarrar algum bode eu morro / mas eu volto pra curtir”.
Depois de crustáceo e réptil, um aracnídeo. A tarântula, ou caranguejeira, é uma aranha peluda que desperta medo, mas seu veneno, no século 19, era usado para fins medicinais. Tarantulismo seria um distúrbio mental, compulsão frenética para dançar, mazela atribuída à picada do bicho. Dança em agitado compasso de 6/8 originária de Taranto, na Itália, à tarantela, no século 17, eram atribuídos poderes de neutralizar o veneno daqueles bichos peçonhentos. Pelo velocíssimo andamento, requererem virtuosismo do instrumentista: há tarantelas de Liszt, Glière, Saint-Saëns, Sarasate, Bottesini e vários outros.
Ah, os equinos! Na capoeira, cavalaria é um toque que serve para avisar os jogadores quando a polícia se aproxima. A cavalgata, ou cavalhada, tradição que vai do sul do Brasil à Bahia, é algo entre cena de dança com espadas e duelo com lanças sobre cavalos, representando a luta entre mouros e cristãos durante a ocupação da Península Ibérica pelos primeiros. O cavalo-marinho é um festejo pernambucano das comemorações natalinas que vão até o dia dos Reis Magos.
Acompanhado por rabeca e percussão, perfila com bovinos: boi-bumbá, o bumba-meu-boi maranhense, ou o boi-calemba do Recife. Mas muito cuidado! Nunca diga boi com abóbora perto de um carnavalesco, a expressão se refere a samba ruim, mal-ajambrado.
Falando em bovinos, cabe lembrar o boi voador, animal empalhado a mando de Maurício de Nassau, governador da colônia (século 17), que deu troco à negativa da coroa holandesa de financiar uma ponte sobre o Capiberibe, entre Maurícia e Recife (o reino neerlandês advertira: verba para ponte “só no dia em que boi voar”). Às suas próprias expensas, Nassau fez não só a ponte, mas um boi empalhado, sob roldanas, que atravessou o rio, na inauguração, como um teleférico.
Inspirou Chico Buarque na divertida “Boi Voador”, que liga a anedota de Nassau com o período em que a censura havia proibido falar do boi gordo retido no pasto, retardando o abate: “Quem foi, quem foi / que falou no boi voador / manda prender esse boi, seja esse boi o que for”.
Há também insetos como o besouro, um coleóptero pesado para as finas asas traseiras que o faz voar (as dianteiras servem apenas de carcaça). Elas têm de se agitar com muita velocidade para alçar o bicho a voo, fazendo zumbido.
O compositor russo Nikolai Rimsky-Korsakov (1844-1908) é autor de uma ópera, “A Lenda do Czar Saltan”, em cujo terceiro ato o príncipe Gvidon, filho do monarca, pede a um pássaro mágico que o transforme em um besouro, para que possa ir ter com seu pai – a música descreve o voo errático e agitado do inseto.
Mas o “Voo” descolou-se da ópera e passou a ser mais conhecido como peça de concerto de grande dificuldade, tendo sido gravado por boa parte de nossos virtuoses do piano e violino. O lendário flautista James Galway usa a técnica da respiração circular (“circle breathing”), para que o “voo” não sofra interrupção – ele inspira com o nariz enquanto assopra pelo bocal o ar armazenado.
“O Elefante” é um solo dos contrabaixos em “O Carnaval dos Animais”, do francês Camile Saint-Saëns (1835-1921), quinto dos 14 movimentos que representam diversos animais. O 13º, “O Cisne”, é repertório de dez entre dez violoncelistas, em cuja versão para balé a fenomenal Anna Pavlova fez um cisne inspiradíssimo (1905), sublime dança em luta contra a morte até o momento derradeiro (link no final do artigo).
Uma tese sobre bichos e música seria um trabalho interminável. Busquei apenas homenagear os animais, nossos companheiros e inspiração. E os melhores amigos!