Henrique Autran Dourado
“Os sonhos mais lindos, sonhei / de quimeras mil, um castelo ergui…” Gravação eternizada em 1976 na voz incomparável de Elis Regina, “Fascinação” já havia sido cantada por meio mundo, a partir da composição de 1905 do francês Maurice de Féraudy e Dante Marchetti, que no Brasil recebeu letra de Armando Louzada. A autoria a César seja dada, pois nesta terra vale para o compositor o ditado “papagaio come milho, periquito leva a fama”, e cantores passam a ser autores na boca do povo.
Em 1965, o grupo Mamas and the Papas gravou “California Dreamin’”, sonho de saudade do calor de Los Angeles em um duro inverno em NY. Mais tarde, John Lennon cantou o fim do sonho Beatle de uma geração em “O sonho acabou, o que posso dizer?” (“The dream is over, what can I say?”), de onde a “casquinha” de Gil em “O sonho acabou / quem não dormiu no ‘sleeping bag’ nem sequer sonhou”.
“Um Sonho de uma Noite de Verão” (“A Midsummer Night’s Dream”) é uma espirituosa amálgama de romance, cenas cômicas, mágicas e plenas de jovialidade escritas por William Shakespeare em 1595, sonho que descreve o casamento de Teseu, rei de Atenas, e Hipólita, filha de Ares, neta de Zeus e rainha das amazonas, na mitologia grega. Em ambiente envolto por véu onírico em um bosque habitado por fadas, seis jovens atores apresentam, durante a cerimônia nupcial, a peça “Píramo e Tisbe”, contada por Ovídio.
Quase dois séculos e meio após, em 1826, Felix Mendelssohn, ainda jovem, compôs uma linda abertura orquestral que leva esse título de Shakespeare, mas apenas 16 anos depois, em 1848, viria a escrever a música incidental para a peça, sob a bruma de um clima de sonho. A obra inclui a popularíssima Marcha Nupcial, executada em nove entre dez casamentos nos dias de hoje.
Em “A Interpretação dos Sonhos”, Sigmund Freud estabeleceu conexões entre o estágio do sonho, que hoje sabe-se acontecer na fase do “movimento rápido dos olhos” (REM, ou “rapid eye movements”), e o subconsciente do indivíduo, tendo como pano de fundo desejos, frustrações e traumas sexuais. Nas sessões de psicanálise, Freud anotava os sonhos relatados pelo paciente e interpretava significados, que considerava de grande importância para suas conclusões clínicas.
O “daydreaming”, ou “rêverie”, em francês (algo como “sonhar acordado”) é o sonho em plena vigília, um mergulhar acordado em devaneios, tão frequente na vida que chega a nos ocupar uma parte significativa do tempo, nos dias modernos. Não há consenso sobre o “daydreaming” entre as diversas correntes da psicologia, mas os freudianos parecem associar o estado onírico na vigília aos sonhos durante o dormir: instintos reprimidos. O escritor americano Mark Twain (“As Aventuras de Tom Sawyer”) longe dessas teorias, resumiu esse vagar da mente em sua meninice, lamentando a fantasia desfeita: “Quando criança, lembrava-me de tudo: do aconteceu e do que nunca havia acontecido. Hoje, lembro-me apenas do que realmente acontecera”. Sonho e realidade se andavam de mãos dadas.
Fora do ambiente psicanalítico ou onírico, também chamamos sonho uma vontade intensa de que um futuro de grande vulto se realize, como foi o caso de Martin Luther King Jr, pastor batista e líder afro-americano em sua luta contra o racismo e pelos direitos civis. Com “Eu tenho um sonho” (“I have a dream”), proferiu um discurso histórico em 28 de agosto de 1963, na famosa “Marcha sobre Washington por emprego e liberdade”. O sonho de King era pela igualdade racial, pelo dia em que seus filhos pudessem viver em equidade de condições com os dos cidadãos brancos. Protestou por suas crianças serem “despojadas de sua identidade e privadas de dignidade”, e o negro “vítima dos indizíveis horrores da brutalidade policial”. King Jr. foi assassinado cinco anos depois.
Quais seriam os sonhos de hoje, voláteis como nuvens que são? Talvez o maior, em todos nós, seja o dos mais simples arbítrios. A liberdade de emoldurarmos velhas máscaras como símbolos de um tempo que não queremos viver novamente; a de poder sair, abraçar, beijar, fazer novas amizades, erguer juntos copos de chope em celebração à vida, gargalhar. Ou ir a um concerto, ouvir músicos de volta à sua paixão e labuta, queremos a liberdade de poder sair com o cuidado de antes – evitando sermos atropelados por um ônibus, dândi embriagado ou trem; de sermos assaltados, vítimas de bala certeira ou perdida, coisas do velho cotidiano, como se o antigo dia a dia se tornasse poço de desejos e conquistas. “Navegar é preciso”, disse o poeta Fernando Pessoa, como se a vida, em si, não o fosse.
Muitos, por fanatismo ou ignorância, correm o risco e nos colocam em perigo. Vale trazer à cena agora um grito de lucidez de Caetano Veloso, em “Janelas Abertas”: “Sim, eu poderia abrir as portas que dão pra dentro / percorrer correndo os corredores em silêncio / (…) Até que a plenitude e a morte coincidissem um dia / o que aconteceria de qualquer jeito / Mas eu prefiro abrir as janelas pra que entrem todos os insetos”. Entre os milhares que nos braços da morte, na plenitude da vida, foram levados deste mundo por desprezarem o fato de que não há mágicas a serem feitas – ao menos tão cedo – nem drogas miraculosas de falsos curandeiros modernos. Cabe principalmente nos irmanarmos às incontáveis famílias em luto pelos que entraram nessa mórbida contabilidade não por risco consciente – mas vítimas de um acaso fortuito rumo ao trabalho para não perder o emprego que provém o pão de cada dia aos seus familiares.