Henrique Autran Dourado
Janeiro de 1968. Estreava no Rio a peça “Roda Viva”, de Chico Buarque, que com as alegorias de sempre traduziu em desejo de mudar toda a angústia daqueles tempos: “… a gente quer ter voz ativa / no nosso destino mandar / mas eis que chega a roda viva e / carrega o destino pra lá”. E lá ia “roda-mundo, roda-gigante, rodamoinho, roda-pião”… Tudo, tudo a roda levava: sonhos, ideias, pessoas.
Naquele ano, em Memphis, EUA, a roda levou Martin Luther King, Jr., carismático líder negro norte-americano que proferiu um dos mais belos discursos da história, “I Had a Dream” (“Eu tive um sonho”). A contralto gospel Mahalia Jackson interrompeu-o da plateia com sua voz possante: “conte-os sobre o sonho, Martin!” King abandonou a leitura e, como bom orador luterano dos EUA, improvisou com veemência frases inesquecíveis.
Junho de 68. Cinco anos após o assassinato de seu irmão John F. Kennedy, tomba o senador Robert Kennedy, do clã da matriarca Rose, condessa pelo Vaticano, ambos vítimas da histórica disputa política, da máfia ou da guerra fria. Naquele mês, no Rio de Janeiro, marchou a “passeata dos cem mil”, um protesto pacífico contra a censura e a crescente violação de direitos. A roda levara o estudante Edson Luís, 18 anos, abatido a tiros pela polícia no restaurante Calabouço, centro do Rio. Para o enterro, no Cemitério São João Batista, o esquife foi erguido em revezamento durante quilômetros, a multidão bradando o mantra “mataram uma criança, podia ser seu filho”.
A morte do jovem estudante, a passeata de artistas, intelectuais e religiosos de braços dados com o povo e o discurso do deputado Moreira Alves, contra a invasão da Universidade de Brasília, foram os três fios que, unidos, acenderam o estopim para que no dia 13 de dezembro fosse detonada a promulgação do AI-5, que fechou o Legislativo, impôs censura total, suspendeu direitos e concedeu poderes imperiais ao presidente da República.
Esses acontecimentos, somados os ecos do movimento estudantil na França sob a égide do franco-alemão Daniel Cohn-Bendit, mais a semente da revolução pop que germinava e floresceu no ano seguinte em Woodstock, encontraram um mundo no ápice de um ciclo de ebulição criativa.
Naquele cenário, 1968 trouxe pérolas da MPB como “Baby”, de Caetano, encomenda de Betânia para o irmão; “Retrato em Branco e Preto”, de Jobim e Chico, um lamento apaixonado: “o que é que eu posso contra o encanto / desse amor que eu nego tanto / evito tanto…”. “Sabiá”, da mesma dupla, é uma doce canção de saudade – ou uma ode ao devaneio do retorno do exílio: “Vou voltar / sei que ainda vou voltar / para o meu lugar”. O Maracanãzinho tremeu ante apupos e protestos da plateia do 3º Festival Internacional da Canção: a massa não se conformava com o primeiro lugar dado a “Sabiá” em detrimento de sua favorita, “Pra Não Dizer que Não Falei de Flores”, de Vandré, que se tornaria hino político da juventude.
E quantos bons sambas nos deu 1968! Destaque para o genial “Samba do Crioulo Doido”, de Sérgio Porto, samba de enredo que nunca foi à avenida mas desfilou pelos ouvidos do país inteiro: “Foi em Diamantina / onde nasceu JK / que a princesa Leopoldina / arresolveu se casá / Mas Chica da Silva / tinha outros pretendentes / e obrigou a princesa / a se casá com Tiradentes”.
A MPB pós-bossa começava sua fase universal, livre de velhos conceitos e imersa em ricas influências. “Tropicália”, de Caetano, era a pedra fundamental: “O monumento é de papel crepom e prata / os olhos verdes da mulata” (link no final do artigo). Surrealista, dadaísta, antropofágico, Caetano também compôs “Superbacana”, enquanto Jobim lançava “Wave” (“Vou te contar”), de melodia e harmonia bastante sofisticadas. Gilberto Gil, de braços com o tropicalismo, lançou “Soy Loco por Ti, America” (“… soy loco por ti de amores”).
No balanço, “Nem Vem que Não Tem”, de Carlos Imperial (“Nem vem de garfo que hoje é dia de sopa / (…) nem vem de escada que hoje o incêndio é no porão”); a Jovem Guarda chega de roupa nova com “Vesti Azul”, de Nonato Buzar, enquanto Marcos e Paulo Sergio Valle falavam de música e luta social em “Viola Enluarada” (“… no sertão é como espada”). Nas artes plásticas, Andy Warhol, nos EUA, e Oiticica, no Brasil; na filosofia, Sartre, Marcuse, Adorno, Hubermas; no teatro e cinema, Glauber, Zé Celso, Pasolini, Godard. Na poesia e prosa, Capinam, Drummond, Bandeira, Cabral e Clarice, a quem Caetano homenageou (“Que mistério tem Clarice”). O Pasquim era gestado enquanto questionamentos, inquietações e medo pululavam. Criava-se, e como se criava!
Se o ocaso do Império Romano viu a “Idade das Trevas”, também houve o Renascimento e o “século das luzes” (século 18). Aconteceu também um longo ciclo, barroco-classicismo-romantismo. No século 20 eclodiram duas guerras mundiais, enquanto ideologias extremistas avançavam. Seria má-fé postular que foi o mal que levou o ciclo da cultura ao pico ou creditar ao tsunami repressivo mundial em 1968 a explosão criativa em todos os níveis. Só entristece saber que hoje, no Brasil, com guinadas e retrocessos de toda ordem, mas dentro de relativa normalidade democrática, navegamos na rasante da maré, quase a seco, no ponto de tangência mais baixo de um ciclo.
SEVERIANO, Jairo, MELLO, Zuza Homem de. “A Canção no Tempo”. Vol. 2. SP: Ed. 34, 1998. SOUZA, Tárik de. “O Som Nosso de Cada Dia”. P. Alegre: L&PM, 1983. MOURA, Roberto. “MPB”. SP: Vitale, 1998.