Henrique Autran Dourado
O nome Messias vem de Messiah, do hebraico romanizado Mashiash; para os judeus, refere-se ao Salvador, que virá redimi-los. Entre os cristãos é Jesus Cristo, que morreu para nos salvar, e na parusia conduzir o Juízo Final, “de onde haverá de julgar os vivos e os mortos”. “Messias”, no caso deste artigo, é a conjunção do belo e do perfeito, acima do bem e do mal.
No auge de sua carreira, em 1716, Antonio Stradivari, ou Antonius Stradivarius, de Cremona (latinizado à moda dos luthiers da época), construiu um violino tão próximo da perfeição quanto humanamente possível. Apaixonado por sua obra-prima, com ele permaneceu durante 21 anos, até morrer. Seu filho Paolo vendeu-o ao conde Cozio di Salabue, “conoisseur” e colecionador de reputação pouco ilibada, que batizou o instrumento com o nome da cidade de seu título nobiliárquico, Salabue. O preço, corrigido monetariamente, teria sido hoje de meros R$ 62.250.
Mais de um século após a morte de Stradivarius, Luigi Tarisio, outro voraz colecionador italiano, adquiriu o instrumento e, continuando a tradição – ou sina -, ficou com ele também até morrer, em 1854. Outro colecionador e especulador, o grande luthier francês Jean-Baptiste Vuillaume, adquiriu não apenas a obra-prima, mas toda a coleção de Tarisio, o dono da preciosidade. Jean-Dephin Alard, grande violinista e genro do então finado Vuillaume, adquiriu o violino da família pelo equivalente hoje a R$ 1.811.000, uma pechincha. Atualmente, um leilão do instrumento reverteria em tumulto, e com uma grande interrogação: o violino, em princípio, não tem preço.
Foi em uma conversa entre Tarisio, Vuillaume e Alard sobre a perfeição daquele instrumento, que o último cunhou a célebre frase: “certamente, senhor Tarisio, este violino é como o Messias dos judeus, que por ele sempre esperaram, mas nunca chegava”. Bastou para o instrumento ser rebatizado com o nome pelo qual o conhecemos hoje.
A família do especialista Hill, luthier e poderoso colecionador de Londres, adquiriu-o para o Ashmolean Museum de Oxford, onde até hoje é mantido em perfeito estado de novo, e serve de paradigma para todos os luthiers do mundo. Raros tocam ou tocaram o violino, destacando-se o virtuose Joseph Joachim, que declarou por escrito nunca haver tocado em um instrumento de som e volume a um só tempo tão suave e poderoso, opinião dividida com Nathan Milstein, fabuloso solista.
O “Messias” ficou, assim, a um passo da perfeição, o “Gradus ad Parnassum”. Parnaso é uma deslumbrante montanha perto de Delfos, na Grécia. Na mitologia, lá morava Apolo, deus da perfeição, da harmonia e da beleza, ladeado pelas musas inspiradoras das artes; também habitava Dionísio, deus das festas, do vinho e do prazer. Nada mais apropriado.
Inspirado em capítulos do Êxodo segundo a Vulgata, tradução latina da bíblia da época, o florentino Michelangelo Buonarroti, gênio da Alta Renascença, começou a construir em 1505, por encomenda do papa Júlio II, uma estátua de Moisés em puro mármore para ser colocada na igreja de San Pietro in Vincoli, em Roma. Ornamentação de pompa, circunstância e vaidade para a própria sepultura papal, foi concluída apenas 32 anos após sua morte, em 1545, tempo de trabalho que o escultor levou para finalizá-la. Júlio II era conhecido como “o papa guerreiro”, dado o seu histórico exército de muitos embates militares.
Michelangelo interpretou a seu jeito, como os italianos de seu tempo, trechos do Êxodo na Vulgata: Moisés com as tábuas da lei e dois chifres na cabeça, atribuídos a uma tradução equivocada da palavra “keren” que se referiria a dois raios fulgurantes, a sabedoria que lhe teria sido dada por Deus para sua missão de legislador divino. Uma obra tão perfeita que, segundo se conta, teria feito um Michelangelo raivoso exclamar, depois de atirar sua marreta de trabalho sobre o joelho da estátua: “perchè non parli”? Por que não falas? (anedota popular, segundo especialistas como Antonietta Bandellonni, em “Michelangelo Buonarroti è Tornato”).
Em seu ensaio “O Moisés de Michelangelo”, Freud, admirador do artista, interpreta a obra com detalhes que descrevem o espírito da escultura com a perspicácia do grande psicanalista e observador apaixonado: “Moisés está sentado, o corpo voltado para a frente, a cabeça com sua volumosa barba para a esquerda, o pé direito apoiado sobre o chão e o esquerdo elevado para que apenas os dedos do pé toquem a base. Seu braço direito apoia as Tábuas da Lei com algo na palma da mão que se parece com um pequeno livro, junto a uma mecha de sua longa barba. O braço esquerdo descansa sobre seu colo”. A obra é tão perfeita, no rosto, nas mãos, nas vestes, na expressão, na simbologia peculiar a Michelangelo – como as diferenças entre as mãos, as veias da direita saltadas, contrastando com a esquerda, da sabedoria e expressão, em suave repouso. Segundo Freud observou, Moisés teria acabado de descer do Monte Sinai, onde fora expulsar adoradores do Bezerro de Ouro (Êxodo, 32), razão da mão direita sofrida por carregar as Tábuas de pedra.
A escolha dessas duas altas figuras bíblicas, Messias e Moisés, como paradigma de obras de arte próximas à perfeição, não foi por acaso, vai além da ligação religiosa dos títulos. Ambas representam a busca pelo perfeito artístico, ideia que dá título a várias peças e estudos de virtuosismo musical, representando os degraus da escalada para a perfeição (“Gradus ad Parnassum”) – que nunca será atingida.