Henrique Autran Dourado
Charlie Chaplin era um gênio. Nascido em uma favela vitoriana em Lambert, Londres, em 1889, cresceu em meio à pobreza e chegou a ser famoso como poucos na sua época, recebendo até o status de Sir, alto título da Coroa Inglesa. Até 1920, Chaplin rodou 60 filmes de curta-metragem, o chamado “cinema mudo”, produção que povoou as vidas das crianças até os nossos tempos, embalada em uma sensível crítica social, com sua visão da época e a vida e pobreza que lhe serviram de esteio e inspiração para criar. Dos grandes filmes que produziu – e em que atuou – estão joias como “O Garoto”, “A Corrida do Ouro”, “Luzes da Cidade” e “Tempos Modernos”, todos entre 1921 e 1936, até chegar à obra-prima “O Grande Ditador”, de 1940, um filme belíssimo, o primeiro filme realmente sonoro de Chaplin.Tinha ele mesmo no papel de um líder fanático, personagem que, obviamente, era uma crítica satírica e ácida ao plenipotenciário Führer da Alemanha nazista, Adolph Hitler.
Embora ainda em período de paz, mas perturbado pela ameaça nazifascista na Europa e um crescente antissemitismo, o cineasta tinha fortes ligações com a comunidade judaica – embora não pertencesse a ela na sua origem – e assim pôde desempenhar com maestria tanto o papel do grande ditador quanto o de um barbeiro judeu, homem perseguido como tantos. Seu monólogo é tido pelos estudiosos como um dos melhores, mais perfeitos e emocionantes da história do cinema: “Desculpem-me, mas eu não quero ser um imperador. Não é o meu ofício. Não almejo governar ou conquistar ninguém. Gostaria de ajudar a todos, se possível.Judeus, não judeus, negros e brancos”.
Mais adiante, em sua autobiografia, de 1964, Chaplin afirmou que nunca teria rodado o filme se na época pudesse antever o que viria depois: muito além de sua obra foram as perseguições e delírios de poder de Hitler, os horrores, as atrocidades,os avanços nazistas sobre a Europa, os covardes ataques “Sturm um Nacht” (tempestade e noite) eo Holocausto.
Chaplin teve como diretor assistente seu meio-irmão Wheeler Dryden, mas escreveu o roteiro e produziu o filme sozinho. Àquela época já existia o Chaplin Studios, perto de Los Angeles (EUA), além de outros sets de filmagem na região (as cenas sobre a I Guerra foram tomadas no Canyon Laurel, entre Los Angeles e o Vale de San Francisco). A música foi composta pelo próprio Chaplin, com o auxílio de Meredith Willson, segundo quema cena em que o autor, como o barbeiro judeu, escanhoava um freguês, teve como fundo uma gravação fonográfica da 5ª “Dança Húngara” de Brahms apenas para preparar o timing de filmagem, e foi montada antes de o próprio Chaplin chegar.Após ouvi-la, pediu que Wilson a gravasse com orquestra em estúdio, incorporando-a definitivamente à trilha sonora da cena.
As filmagens começaram em setembro de 1939, coincidindo com a invasão da Polônia pelas tropas nazistas, que resultou na eclosão da II Grande Guerra.As filmagens levaram, em vista dos acontecimentos, apenas seis meses, mas houve intensa labuta para concluí-lo nesse curto intervalo, o que não impediu o filme de ser um dos mais aclamados da história. O papel principal, o ditador, era uma alegoria que estampava Hitler desde o uniforme militar ao nome do personagem:Chaplin era Adenoid Hynkel, boutade com o nome do ditador alemão e com o título de Phooey – pronuncia-se “fuuei”, aludindo a “fooley”, tolo -, corruptela de Führer, palavra alemã para “líder”, mito para seus fanáticos seguidores.
A cena mais marcante do filme é aquela em que Hynkel, com bigodinho e farda como a do Führer, brinca,salta e sobe na cortina, dizendo-se “com medo de si mesmo”, de lá expulsa do gabinete o assessor e começa seu grande solo: abraça o globo de plástico sobre a mesa, simbolizando o planeta inteiro com seus países, que deseja dominar.Dança, gira o balão na ponta do dedo, brinca, chuta-o com o calcanhar em uma coreografia majestosa.Deita-se sobrea escrivaninha, joga o mundo pra cima com as nádegas…Até que o globo de plástico explode, para seu grande desespero.
Muito além do que um filme, trata-se de um depoimento contundente sobre o poder afrodisíaco e narcotizante de que são possuídas as pessoas fortes nos braços e no discurso,mas vazias no coração.Inseguras em sua vaidade, tornam-se malévolas e criminosas por sua própria índole, incontroláveis na gula do poder. E isso valeu tanto para Hitler e Mussolini, na época,quanto para Átila, no século 5, Gengis Khan, século 13, a Rainha Mary (“Bloody Queen”, ou “Rainha Sangrenta”), no século 16, Stalin, na primeira metade do século 20, Idi Amin, anos 1970, MaoTsé-Tung, 1949-1976, Pinochet, 1973-1990, e tantos outros.
O príncipe chega ao poder aclamado ou pela força, dizia Macchiavelli, cujos conselhos deveriam ser acatados.Qualquer que seja a forma com que tenha chegado ao poder arrisca-o a transformar-se em tirano cruel. Precisa habilidade com os servis à sua volta e os homens do povo – ora com agrados, ora com punições.Os famélicos pelo mando e pela riqueza são seduzidos pelo poder em sua beleza mais pérfida, e têm a mentira como grande arma.
Ditadores ou aspirantes afinam-se com Hitler,em seu “Mein Kampf” (Minha Luta):“A grande mentira tem sempre a força da credibilidade, porque as massas são mais facilmente corruptíveis em sua natureza emocional profunda do que de forma consciente e voluntária.Assim, a simplicidade primitiva de suas mentes é vítima mais fácil das grandes mentiras do que das pequenas falsidades”.