Henrique Autran Dourado
Era o ano de 1889, seguinte ao da Lei Áurea da princesa Isabel, que chancelou o que já acontecia de fato: após as leis dos sexagenários (1871) e do ventre livre (1885), os escravos estavam quase todos aquilombados ou libertos. A história – tão frequente nessas horas…– conta que a turma revolucionária se reunia com assiduidade no Clube Militar, tramando o golpe republicano que feriria de morte o Império. O Visconde de Ouro Preto, chefe do Conselho de Ministros e bajulador-mor do monarca, foi quem concebeu a festa, um bem-bolado entre os 54 anos de Império sob D. Pedro II e as bodas de prata do Conde D’Eu e a Princesa Isabel. Ampliou ainda mais a festança, ou bacanal -, a recepção ao navio chileno Almirante Cochrane, que, aliás, já havia aportado dias antes – homenagem ao país amigo, aliado do Império. Marcada para 19 de outubro, com a morte do rei de Portugal e sobrinho de Pedro II, D. Luís, a fuzarca foi adiada para o dia 9 de novembro.O baile demonstraria o poder imperial e a robustez da monarquia brasileira.
Temendo os revolucionários, avaliando a segurança de possíveis locais para o baile, como o Palácio Imperial de Petrópolis, decidiu-se pela Ilha Fiscal, uma enorme construção na Baía de Guanabara, arquitetura de influência francesa – “comme il faut”. Disse o imperador: “é um delicado estojo, digno de um brilhante” (imperador, coroa e cetro na mão, devia estar pensando em si mesmo). A Marinha de Guerra, única das Armas ainda aliada fervorosa da monarquia, cedeu a Ilha para hospedar a festança. O visconde de Ouro Preto não mediu esforços e sangrou a verba do Ministério de Viação e Obras Públicas destinada aos flagelados da seca no Ceará (ninguém se importará, pois a seca é um flagelo permanente, e o Baile será uma ostentação única, deve ter imaginado). Para o rega-bofe, foram adquiridas mais de 4.500 garrafas de vinho, 12 mil litros de cerveja, 1.900 garrafas de champanhe e um bocado de conhaque, licores e outras bebidas. Quase 5.000 convidados foram lautamente servidos com faisão, caviar, salmão e outras iguarias finas.
Chegado o dia do baile, D. Pedro, 64, subia, imponente, as enormes escadarias, vislumbrando um palácio sob cujos degraus os convivas, se curvaram para recebê-lo. Acometido por um mal-estar,o monarca fraquejou e foi ao chão, sendo acudido daqui e dali. (Ao se recuperar, se já houvesse aquele samba genial do Paulo Vanzolini, de 1962, teria ouvido: “reconhece a queda / e não desanima / levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”). No silêncio, entre muitos“ohs”,D. Pedro, após recompor-se do tombo, deu de proferir uma daquelas frases lapidares, que deve ter matutado após sua breve ausência: “cai o imperador, mas não cai o Império!” Sendo a política, especialmente em tempos de turbulência, feita de gestos e frases, houve quem tenha pensado em puro teatro para “enchanter la noblesse”(em francês, já que o menu e a “cartedes vins”, “crème de la crème”,também o eram). A célebre frase do imperador foi um vaticínio adverso: seis dias depois, 15 de novembro, caiu o Império, sob o golpe republicano de Deodoro.
Na manhã seguinte, após terminada a farra,relatórios da serventia encarregada da limpeza fizeram o rol das peças de roupas e objetos largados no pomposo castelo: numerosas cintas-ligas, corpetes e coletes de senhoras, além de quase 30 chapéus e cartolas masculinas, sem falar em discretos canudinhos e bandejas de prata com vestígios de um alcaloide muito apreciado pela sociedade da época, proibido no Brasil apenas em 1921: o cloridrato de cocaína.
E veio a República -do latim “res-publica”, “coisa pública”. Ainda que tarde, um século após a queda da Bastilha, na Revolução Francesa (1789), e a revolução americana (1791), o Brasil ingressaria no seleto clube republicano, dando fim ao regime monárquico. Na época, o país imaginou estar encerrando o ciclo de farras às custas das secas, das locupletações da “coisa pública”, das fartas mordomias, da cobrança do“quinto”. Até hoje,alguns luxos ainda sobrevivem: todos os negócios imobiliários em Petrópolis, RJ, ainda pagam o laudêmio, um imposto devido à enfiteuse, “direito real em contrato perpétuo, alienável e transmissível para os herdeiros”, que reverte para os dez membros sobreviventes da realeza: um afago de mais de R$ 6 milhões, todos os anos.
No último dia 15 de novembro a Proclamação da República foi celebrada pela 132ª vez.Mas os gastos palacianos com luxúrias,hoje,não vão longe daqueles do Baile da Ilha Fiscal, guardadas as devidas proporções: lagostas, camarões, caviar e champanhe às pencas. Assim como as expensas ministeriais, as mordomias da caserna cresceram, tal qual as benesses para as classes militares e policiais, as promoções nas carreiras e até casas próprias subsidiadas pelo Poder Público. “Não!”, alertou com a perspicácia de sempre o respeitado general Villas Bôas, ex-comandante do Exército e genuíno democrata, e prosseguiu: “os militares não estão no poder, só resta assegurar que a política não chegue aos quartéis”. Em vista dos recentes imbróglios sobre orçamento secreto e teto de gastos, uma vez derrocado o primeiro, que não seja a responsabilidade fiscal um novo baile palaciano, sem ilha nem navio chileno. Mantenha-se o espírito republicano!