Henrique Autran Dourado
O arco teve, desde sua origem, uma aura de simbolismo, mistérios e virtudes que remontam à antiguidade. Nas construções, a forma em arco evita o estresse em um ponto só, a força de sustentação é distribuída por toda a estrutura do vão, haja vista inúmeras obras que resistem ao passar dos séculos. Fator de grande importância na sustentação de pontes, às vezes até mesmo sem uso de qualquer tipo de massa ou cola entre as peças, sejam elas de pedra ou produzidas com outro material, aproveitam-se da gravidade, todas as forças convergindo, distribuídas em direção ao centro.
(Nas aulas de música, era pensando nisso que eu mostrava que os dedos dos instrumentistas de cordas devem trabalhar arqueados como se a mão estivesse em repouso. Assim, os dedos trabalham com tensão bem dividida entre os músculos, ao invés de quando os dedos estão retos ou se curvam para trás, esforço concentrado que dificulta o relaxamento).
Não há como deixar de falar no Arco do Triunfo, de Paris, um dos mais famosos monumentos do mundo. Erguido em homenagem aos heróis da Revolução Francesa e das Guerras Napoleônicas, sua construção abriga, também, a tumba do soldado desconhecido da I Grande Guerra. Inspirado no Arco de Titus (ano I d.C.), de Roma, o de Paris fez história: outros o seguiram, como o Monumento à Revolução Mexicana (início do século 20) e o Arco do Triunfo de Pyongyang, Coreia do Norte (1982), entre muitos.
No Brasil, os belos Arcos da Lapa, no centro do Rio, são a maior obra de arquitetura dos tempos da colônia. Na verdade, trata-se de um empreendimento não exatamente urbanístico: servia para sustentar um aqueduto para conduzir água do rio Carioca. Foi planejado no início do século 17, e as obras se arrastaram de 1660 até a conclusão, em 1723. O aqueduto dos Arcos sofreu diversos problemas ao longo dos anos; com a República, novas formas de abastecer o Rio de Janeiro foram sendo encontradas e, por feliz iniciativa, cinco anos após a Proclamação aqueles Arcos, já um símbolo da cidade, foram destinados aos bondes da Cia. de Carris Urbanos, levando passageiros à aprazível Santa Teresa, hoje bairro simples mas badalado e sempre na moda – uma espécie de Greenwich Village como em Manhattan ou Vila Madalena em São Paulo. Com lindas vistas chacoalhando na subida do bonde, é cartão-postal e faz parte do roteiro turístico da cidade.
Na música, arte em que é personagem fundamental, o arco dos instrumentos de cordas nos primórdios em tudo se assemelhava ao seu homônimo usado para arremessar flechas: vareta curvada em forma de meia-lua entre cujas extremidades era atada algum tipo de corda ou cerda retorcida. Há 2.500 anos, os nômades do Mar Cáspio já tocavam o rebab, ancestral da nossa rabeca, mas o ravanastron (tributo ao rei Ravana, de Lanka) da Índia e Sri-Lanka, é o que guarda mais semelhanças com a diversidade de instrumentos atuais.
Com o tempo, o arco sofreu diversas transformações: das grandes curvaturas côncavas passou por uma silhueta quase retilínea, até chegar ao formato atual, ligeiramente convexo. A família das antigas violas de arco era grande: a partir das chamadas “da braccio”, apoiada no ombro, passando pelas “da gamba”, entre as pernas, como no violoncelo, e o violone, origem ao contrabaixo.
No século 18, o relojoeiro e grande “archetier” (fabricante de arcos) François Tourte concluiu que o pau-brasil ou uma de suas variedades, como o Pernambuco, seria a madeira ideal, dada sua flexibilidade, densidade (afunda n’água) e pelos veios perfeitos, sem nós. Depois, Tourte curvou a antiga vareta ligeiramente côncava ao contrário, em suave forma convexa, dotando-o de um tipo de flexibilidade que possibilitou muitos novos golpes técnicos e arcadas. O virtuose Giuseppe Tartini (1692-1770) idealizou o parafuso interno à vareta que serve para puxar uma peça de madeira chamada talão e retesar um feixe de crina de cavalo, esticado entre a ponta e a extremidade inferior. O arco passou a ser uma ferramenta até mais importante para o músico do que o próprio instrumento. Grandes solistas dizem que preferem um violino mediano e um ótimo arco do que um excelente instrumento e um arco ruim.
Poderíamos continuar a discorrer interminavelmente sobre o arco, sua importância e vasta utilização na música, abrir o leque para as centenas de instrumentos de arco e suas peculiaridades, do passado longínquo ao presente. Poderíamos falar no arco (ou verga) do berimbau, que, vergado por um fino cabo de aço e percutido com uma vareta, usa uma cabaça na parte inferior como caixa de ressonância – instrumento da capoeira, música, dança e esporte que devemos aos africanos que para cá vieram escravizados.
Além disso, a forma do arco também é poesia, e como letra também serve à criação musical, como na linda canção de protesto “Volver a los 17”, da chilena Violeta Parra: “… el arco de las alianzas / ha penetrado em mi nido / (…) se ha paseado por mis venas / y hasta las duras cadenas / con que nos ata el destino” – música gravada por uma infinidade de artistas, de Mercedes Sosa a Joan Baez.
Com um arco, Chico Buarque descreve a saudade com uma figura poética brilhante em “Pedaço de Mim”: um sentimento a um só tempo doce e perverso, lindo e doloroso, alguém que nunca voltará: “Ó, pedaço de mim / Ó, metade exilada de mim / leva os teus sinais / que a saudade dói como um barco…” E conclui: “que aos poucos descreve um arco / e evita atracar no cais”.