Não desanimeis, animais

Henrique Autran Dourado

Garoto, sempre que ouvia meu pai dizendo essas palavras com duplo sentido, eu ria. Coisa de cujo autor ignoro o nome mas pensada e repensada, tinha lá seus truques. A frase talvez surja em um poema só para lhe aproveitar a ironia; ou em um estudo acadêmico de título homônimo, como o do professor da UnB Luiz Martins da Silva, ao contar uma saborosa história. Disse ele, em seu artigo, que o eminente advogado Sobral Pinto, após visita a Luis Carlos Prestes, então preso e maltratado, “peticionou com a seguinte pérola: rogo amparo ao meu cliente conforme a lei de proteção aos animais”: “animais” pode ser o substantivo que agrega à nossa fauna os que ouvem a frase. Conjugada no imperativo, é uma licença poética, pois gramaticamente correto deveria ser “animeis”. Mas o frasista não quis o rigor, seduziu-o a liberdade da poesia.

É preciso deixar a gramática de lado para interpretar a frase: “animais” é o tom jocoso, que relega os desanimados ao reino animal. Por outro lado, a ironia conjuga ainda um apelo para que as pessoas não desanimem, dando sentido amplo à brevíssima sentença. Animemo-nos, pois, animei-vos uns aos outros como a vós mesmos.

Estamos no fim de uma pandemia ou sonhando com ele: um “wishful thinking” (algo como pensamento positivo, um desejo oculto) após o desfilar parte do alfabeto grego que deu nome a várias cepas virais da Covid. Melhor estarmos mesmo longe dos “animais”: do “wishful thinking”, do bom desejo, não aquela surrada “a esperança é a última que morre”. (A expressão “dobrar o Cabo da Boa Esperança” significa no popular ir a óbito, ou, no jargão, “êxito letal” – tradução marota ao pé da letra do inglês “letal exit”). Tudo porque o famoso promontório avança entre os oceanos Atlântico e Índico, na Cidade do Cabo, África do Sul: um lindo apêndice terrestre, apelidado Cabo das Tormentas (ou Tormentoso) pelo navegador português Bartolomeu Dias em 1488, em busca do caminho para a Índias. Escreveu ele: “Partidos dali, houveram vista daquele grande e notável cabo, ao qual por causa dos perigos e tormentas em o dobrar lhe puseram o nome de Tormentoso”. Porém, a canetada real dá sempre a última palavra, conforme descreve adiante: “mas el-Rei D. João II lhe chamou Cabo da Boa Esperança, por aquilo que prometia para o descobrimento da Índia tão desejada”. Politicamente, uma esperta manobra real!

Fiquemos, apesar da tormenta, animados com o possível arrefecimento da pandemia, a que assistimos, mantendo, claro, as cautelas protocolares. Desanimar, sabe-se, até baixa a imunidade e leva à depressão. O final não virá tão fácil, há enorme demanda de vacinas, para ao fim chegarmos ao que dizem os cientistas: aprenderemos a conviver com uma Covid já enfraquecida assim como temos feito com os vírus da pólio, da Aids, do sarampo e das gripes de todas as estirpes. Pois cautela e canja de galinha…

Quanto à carência generalizada, a queda em espiral do padrão de vida, a economia doméstica estrangulada e a carestia que já assola a nação, o “pobretão infeliz” do “barracão de zinco” vai sentir aqui e ali em ano de eleição breves alentos de vida a soprar em seus ouvidos. Disse Malu Gaspar em O Globo (17/03): “Sob a justificativa de impedir que a economia vá para o buraco, (…) serão R$ 30 bilhões em saques antecipados do FGTS, R$ 56 bilhões com o adiantamento do 13º para pensionistas e aposentados, R$ 90 bi para o Auxílio Brasil e até R$ 120 bi para um fundo dos combustíveis. Sem contar os cortes e subsídios fiscais, que poderão chegar a R$ 30 bi, totalizando por baixo R$ 500 bi”. Um alívio de custo multibilionário com curto prazo de validade pingando a conta-gotas na conta dos eu têm fome. E depois deste ano? Para quem crê que será assim, não desanimeis, animais!

Fora a pandemia, a inflação, os juros e a guerra fria, há uma guerra maior fervendo que já se fecha um mês, a invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin – isso porque há outra Rússia, descontente por estar envolvida em um conflito de que discorda. Afinal, a origem do país invasor é a própria Kyiv, ou Kiev, em russo, capital da Ucrânia: Rússia, nação dela concebida como a mãe que traz um filho à luz. Se os dois líderes, Putin e Zelensky, a bem do mundo, vissem tal luz no fim do túnel, seria o bálsamo para os nossos ânimos (apesar de em 1918 o senador americano H. W. Johnson já ter alertado que “na guerra, a primeira vítima é a verdade”). Animemo-nos: Zelensky, figura que parece mais confiável, disse que aguarda o fim do conflito para maio.

Putin não esperava uma resistência ucraniana guerrilheira quase à moda dos Vietcongues, com armas e aviões menores, entre florestas e destroços. Só faltam buracos camuflados ocultando espetos envenenados de bambu, como na Indochina. Guerra de molotovs, granadas com pino no dente, emboscadas… Uma surpresa para o líder russo, com certeza. A tomada de Kyiv não está sendo tão fácil.

Por isso, primeiro, o fim simbólico do vírus da Covid: um novo estado de endemia controlável, como querem os cientistas, enchendo as nações de esperança por uma nova vida, plena de alegria. Segundo, uma solução duradoura – e não panaceias de curta duração – para a extrema pobreza e a fome que assolam nosso país. Terceiro e por fim, pelos estertores de uma guerra particular que, neste mundo que sabemos um só, dilacera economias, cria animosidades e gera ódio, deixando o planeta enlutado e vítima do medo, da incerteza e da fome.

Por tudo isso, mais do que nunca, é nossa hora e vez: não desanimeis. Animeis!