Erros e defeitos ao se cantar o hino nacional

Mas por que o Tite não canta?

Martin Braunwieser nasceu em 1901 na Salzburg de Mozart, filho de um mestre de capela. Após estudos e cargos na Europa chegou ao Brasil em 1928. Dono de inteligência e cultura ímpares, foi professor e músico atuante em São Paulo. Começou a trabalhar, anos depois, na Prefeitura, a convite de Mário de Andrade. Pesquisou o folclore brasileiro, compôs e regeu, e veio a falecer em 1991 – estive na casa dele e sua filha Renata acho que por volta de 1986.

Martin Braunwieser foi Professor de canto orfeônico dos Parques Infantis Paulistanos, e observou, além de horrores ao ouvir o Hino Nacional, a quase impossibilidade de a criançada cantá-lo corretamente. Caprichoso, resolveu anotar as inúmeras falhas recorrentes tanto na música quanto na letra. Seu livrinho “Erros e Defeitos no Modo de Cantar o Hino Nacional”, a que devo o título deste artigo, foi publicado pelo Arquivo Municipal e é hoje “avis rara”, achei-o garimpando em alguns sebos.

O maestro compilou absurdos que podem passar despercebidos aos leigos, mas que não conferem com o sentido musical e o que normatiza a legislação, sobre a qual falaremos mais adiante – tanto do lado rítmico-melódico, a composição de Francisco Manuel da Silva, quanto da letra, de Osório Duque Estrada. Constatou erros graves nas acentuações, como já no primeiro compasso: “Ouviram”, pesando fortemente o “Ou”, quando na verdade o acento deveria recair sobre o “vi”, sílaba seguinte. E observou que nunca cantavam o que está escrito, grupos com enérgicas notas pontuadas já no primeiro verso, e arredondava povo, o ritmo por instinto – disse Mário de Andrade, dada “a índole preguiçosa do povo brasileiro”.

O maestro coletou pérolas como “Ipinanga”, “Ipi-ianga”, “heróito”,  “heróisto” e por aí vai, atentados como “do que a terra margarida”, “em teus seios ó liberdade” (ora, são dois, devem ter pensado os infantes), ao todo 130 principais erros! Quanto à parte melódica, essa parecia missão impossível, já que fora escrita com o título “Marcha Triunfal”, para banda, em 1822 (hino vem da tradição do anthem luterano, que deu origem ao anglicano Deus Salve a Rainha), assim como o “Star Spangled Banner” americano. Depois, foi-lhe adaptada uma letra em 1831, celebrando a data da abdicação: Hino ao Sete de Abril (“Os bronzes da tirania / já no Brasil não rouquejam”), e atravessou décadas até ser ungido Hino Nacional por Deodoro, decisão nada canônica: quem havia levado o concurso fora Leopoldo Miguez, com uma bela letra de Medeiros e Albuquerque: “Liberdade, Liberdade / abre as asas sobre nós! / Das lutas na tempestade / Dá que ouçamos a tua voz!” Este hino chegou a ser publicado no Diário Oficial, mas Deodoro convocou um concurso – vencido por Miguez. O marechal-presidente, parece que “ouvindo o clamor deste povo”, deu o primeiro lugar a Francisco, e recompensou Miguez com o cargo de diretor do Instituto Nacional de Música. E ficamos com a Marcha Triunfal repaginada.

A letra só foi oficializada via decreto de Epitácio Pessoa em 1922, em plena Semana de Arte Moderna de poetas como Manuel Bandeira, Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia. A letra de Osório é escrita em ordem inversa, característica do parnasianismo do século anterior, o que dificulta a compreensão. “As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico”, seria o início da letra em ordem direta, só para servir de exemplo. (E pasme! Os integrantes do Coral do Parque do Ipiranga, bem ali ao lado do riacho, não sabiam onde fora proclamada a Independência!)

Um depoimento pessoal: há muitos anos, depois de um programa na Rádio Band em que eu falava da música e o professor Pasquale Cipro Neto da letra do Hino, levaram-me em um furgão para um ponto bem movimentado, o Obelisco do Ibirapuera. Ali, irradiaram que os que cantassem o Hino corretamente levariam dez computadores. Pararam quase três dezenas de carros, mas em vão, ninguém acertava. Com o passar do tempo os patrocinadores pediram que pelo amor de Deus fossem dados os prêmios. Bom, passei a dar os parabéns a um a cada dois ou três “competidores”. Com certa tristeza, sim, mas era o trato: dar os dez computadores.

Vamos à lei 5.700, dos símbolos pátrios, e leis e decretos subsequentes, que trataram de normatizar tanto a Bandeira Nacional quanto o Brasão de Armas, o Selo e, claro, o Hino Nacional, que deve ser executado em Si bemol maior ou Fá maior, a depender da solenidade e ocasião, e a pulsação sempre a 120 b.p.m (batidas por minuto, ou seja, duas por segundo). Por isso, a despeito da beleza da música de Francisco Manuel, que estudou com Neukomm, ex-aluno de Haydn, a dificuldade de se cantar o Hino, originário da Marcha de 1822, composta para ser executada por instrumentos. Resumindo, marcha é uma coisa e hino é outra, mas vale a intenção e a beleza melódico-harmônica.

A versão em Lá maior é cantada duas vezes, a primeira começando por “Ouviram do Ipiranga” e a segunda “Deitado eternamente”. Agora, cuidado! a versão instrumental, em Si bemol maior, deve ser executada apenas uma vez, a primeira parte, e sem o canto! Por isso, se nos jogos da Copa você pensou que o Tite não sabe cantar – eu nunca ouvi nem sei o faz bem ou mal -, seguramente sabe como se portar, sendo ele o único a proceder corretamente, entre jogadores com sua “mímica labial”. E olhando para a frente, para o futuro, e não para a bandeira, tradição dos militares, por favor.