Atletas, escritores, músicos… talento e trabalho





Os leigos, espectadores e torcedores pouco sabem o que custou para lhes proporcionar momentos de enorme emoção e alegria. Para abrir o tema, uma frase de Marcel Proust (1871-1922): “Jamais o mundo saberá o quanto sofreram e o quanto lhes deve por nos terem dado tudo o que deram”. Serve também às bailarinas, com seus treinos de seis, oito horas diárias, dia após dia, em busca do “gradus ad Parnassum” (degraus do Paraíso, da perfeição), para aquele curto tempo de realização sobre um palco, seu altar. O atleta passa muitas horas, todos os dias, buscando melhorar sua performance, décimos de segundo a menos; para o instrumentista, o tempo é mais flexível pela maleabilidade da matéria musical.

Meu pai, o escritor Autran Dourado, dizia que não acreditava em inspiração, mas em “ideia súbita”. E as anotava volta e meia em cartõezinhos que levava no bolso. A literatura, mesmo, era trabalho de operário, de “formiguinha”, como a ele se referiu o crítico Humberto Wernek: com hora marcada para começar, bem cedo, hora para sair para seu ganha-pão. Dizia papai que quem vive de livros no Brasil, é livreiro, vigarista ou impostor, nunca um literato. Em outra ponta, o grande maestro Camargo Guarnieri, que conheci e tive a honra de com ele conversar algumas vezes, também trabalhava em seu escritório fechado, labuta diária na construção de suas inúmeras obras, algumas das mais importantes da história de nossa música (sobre essa rotina, fala muito Antonio Ribeiro, meu amigo e ex-aluno do compositor tieteense).

Cada grande artista tem sua variação sobre o tema “o que é o trabalho”. O contrabaixista de origem russa Henry Portnoi, com quem tive aulas de repertório, me disse que “talento acaba”, no sentido de que é preciso manter a chama acesa, e que a facilidade musical pode ser um meio-caminho para a estagnação – ao passo que algum outro músico, aparentemente menos talentoso, com seu esforço constante e metódico consegue subir em linha reta para os andares mais altos. Meu professor Ed Barker – garoto prodígio, aos 16 na Sinfônica de Vancouver, 19 na Filarmônica de NY, 21 na Sinfônica de Chicago e desde os 23 na primeira estante da Sinfônica de Boston – dizia o mesmo, que era necessário lutar diariamente, o maior talento não basta. E mais: que há mil na plateia e apenas um no palco. Sobre ele, foi escrito um livro chamado “Staying Power” – algo como “A Força de Permanecer” (anos 1970).

No fundo, não há atalhos. Se Usain Bolt entrou para a história como novo ícone do esporte, para mim na galeria do Muhammad Ali, Garrincha e outros que vieram de baixo para chegar ao pico da montanha, foi pela ocasião, já que treinou em um país em que a corrida é o esporte nacional, pelas condições físicas ideais, pernas longas, músculos bem talhados, treino incessante. Fez o mesmo caminho do instrumentista, do compositor e do escritor, não mediu esforços e concentração para ser um vencedor. Sim, vencedor, porque o pódio do campeão, do solista ou do regente é o mesmo, do latim “podium”, dos anfiteatros da Roma antiga.

Claro, muito se fala de Mozart (1756-1791), mas o mito do superprodígio, do “predileto dos deuses”, encobre os bastidores de uma educação severa de papai Leopold, ele mesmo músico e professor afamado na Áustria, que obviamente educava os filhos com rigor e controle total dos estudos. Mesmo sendo um dos maiores gênios de todos os tempos, nascido com um talento acima dos limites, não veio ao mundo lendo partituras, transpondo, sabendo harmonia, contraponto, etc. O gênio lutou, com absoluta certeza, para levar seu talento à superação do possível. Bach (1685-1750), com sua vastíssima obra, estudava e trabalhava tanto que fazia crer que seu talento era secundário: “Quem lutar o quanto eu lutei chegará onde consegui chegar”, disse com modéstia de luterano educado na rígida Eisenach.

Nos dias de hoje, o mesmo rigor e estudo faz-se exigir na música popular, ou melhor, na chamada MPB e suas variações. Se há algumas décadas dificilmente um músico popular lia partituras, e o pianista, que geralmente tinha formação técnica e teórica suficiente para ler as notas, costumava ser chamado de “maestro”, o que sempre foi motivo de piadas entre os colegas. As exigências são crescentes nos EUA, na Europa, no Japão, assim como no Brasil, onde já se pode conhecer grande números de instrumentistas e cantores cada vez muitíssimo mais bem preparados. Incluem-se aí os bateristas, cujos grandes nomes do passado tocavam apenas “de ouvido”: Edison Machado, Dom Um Romão, Milton Banana, Aírto Moreira e outros. Hoje, a realidade é outra, o trabalho de estúdio e a necessidade de ensaios mais práticos e curtos exige de boa leitura, o “show bizz” não pode parar, o ritmo do trabalho impede aquela coisa do passado de um grupo ficar mastigando longamente inúmeros ensaios até se chegar a um acordo musical. Mas é importante ressaltar: não existe só a MPB, com ou sem influências do jazz, do impressionismo, do rock, do soul. A boa música brasileira inclui – e da maior importância! – Cartola, Nelson Cavaquinho, Luiz Gonzaga, Noel Rosa, seresteiros e cururueiros, entre outros. Quem se inclui nesse cenário não é para escolas formais de música: a tradição não pode morrer, deve ser livre, o estudo técnico serve ao músico que visa ao mercado de trabalho.

(Homenagem a todos os que chegaram ao pódio que sonharam para suas vidas. E aos que lutam com suor para alcançá-lo).