Alguns músicos transitam com versatilidade entre as áreas de concerto e popular. Foi o caso do Geshwin, de “Porgy and Bess”, do regente e compositor Leonard Bernstein, de “West Side Story”, do pianista Glenn Gould e do trompetista Winton Marsalis, dos contrabaixistas tchecos Jiri (George) Mraz, ex-Oscar Peterson Trio, e Miroslav Vitous, do grupo de “jazz fusion” Weather Report, ambos egressos do Conservatório de Praga. No Brasil, o clarinetista e saxofonista Paulo Moura, o arranjador Rogério Duprat, parceiro da tropicália, e, mais para cá, o violoncelista Jaques Morelenbaum, que trabalhou com Milton Nascimento e Tom Jobim. Isso, sem esquecer aquela turma de arranjadores de sólida formação teórica, formada por gente como Gaia, Arruda Paes, Cipó, Guerra Peixe, Simonetti, o amigo Villani-Côrtes, Peracchi, Panicalli e os mais novos, como Roberto Gnatalli, Roberto Farias, André Mehmari, João Victor Bota e outros.
Jaques Morelenbaum foi para os EUA, e ingressou no New England Conservatory, onde eu estudava. Logo que chegou, pudemos conviver em algumas festinhas saudosistas típicas de casas de brasileiros. Jacques veio de experiências em música popular, desde antes de ingressar no Municipal do Rio; dividia assim sua participação desde a Orquestra Jovem, onde foi colega de naipe de um jovem chamado Antonio Meneses, ali descoberto pelo italiano Antonio Janigro, que o levou para a Europa. De lá, Meneses tornou-se um dos melhores cellistas da atualidade e, segundo consta, resolveu ser solista após ver Morelenbaum tocar um Vivaldi com a Jovem Municipal.
Voltando a Boston, Jaques passou a conviver com aquela “máfia brasileira” de Allston-Brighton, na região da New England, onde passei um dos anos de minha estrada em Massachussets. O gueto brazuca tinha o grande sax e amigo Leo Gandelman, Zé Nogueira, o baterista Pascoal Meireles, os guitarristas Ricardo Chaves, Ricardo Silveira e Victor Biglione, além do pianista Rique Pantoja. Clássicos ou populares, não fazia diferença (a maioria deles hoje no Rio, alguns nos EUA e outros na ponte-aérea). Jaques, ao chegar, levou o mesmo choque musical de todos os brasileiros, ao ver o nível dos bambas de uma grande escola. Mas isso não lhe foi problema: com seu talento, filho de grande maestro brasileiro, estudou com Madeleine Foley, que foi assistente de Pau (Pablo, em catalão) Casals. Mas o destino de Jaques estava mesmo na música popular. Suas excelentes participações em discos do Milton e do Jobim denotam uma ótima formação e extremo bom gosto, e seus arranjos trazem a chancela dos bons.
Um dos primeiros nomes de importância da nossa música mais eclética, cortejado tanto por populares quanto clássicos, foi o carioca Ernesto Nazareth (1863-1933), compositor de peças de uma graça e um gingado muito especiais: “Odeon e Apanhei-te, Cavaquinho”, por exemplo. Nazareth nasceu na favela do Pinto, perto da Lagoa Rodrigo de Freitas, depois reduzida a um conjunto vertical espremido entre a Lagoa e o Leblon, a Cruzada São Sebastião, ideia de D. Helder Câmara (1955) e, como sempre, logo reduto do tráfico e da bandidagem. Voltando a Nazareth, o rapaz teve uma formação básica em composição e teoria, porém só o suficiente para ser “emancipado” musicalmente por seus professores. Acharam que o pupilo, em pouco tempo, já sabia o bastante.
Ganha-pão comum na época, tocou em cinemas-mudos e cafés. Em seu ofício, pôde conhecer (e ser admirado por) gente como Darius Milhaud, compositor e então adido cultural da França no Brasil, Francisco Mignone e, veja só, até “outsiders” como Ruy Barbosa. Assim, familiarizado com gente importante e conhecedora de arte, foi para São Paulo, em cujo conservador “Theatro Municipal” logo se apresentou a convite de Mário de Andrade, o controverso diretor de cultura da Prefeitura. O Municipal fora o pináculo de uma glória musical que logo cederia lugar à decadência, para só depois reassumir sua plena importância. Andrade dizia que o Teatro era lugar frequentado por aquelas donas que ficavam “chacoalhando as joias” para exibi-las, enquanto os maridos “fumavam charutos e conversavam frivolidades nos corredores”.
Nervoso, temperamental e boêmio, Nazareth contraiu sífilis, doença que passou a atormentá-lo. Arrumava brigas e confusões, entrando em crises cada vez mais profundas. Não demorou, e trataram de levá-lo para o Rio, onde foi internado no Hospício Pedro II, na Urca, e de lá transferido para o de Jacarepaguá, mas fugiu após um ano. A escapada, porém, durou pouco: foi encontrado boiando em uma represa nas proximidades, dias depois da escapada.
Chiquinha Gonzaga (1847-1935) virou tema “global”, mas merece ser lembrada pelo enorme – quase 800! – e belo volume de obras. Marcou história com sua vida insólita, condenável para a época. Tanto que seu pai, José Basileu Gonzaga, chegou a considerá-la “morta” para a família. As três filhas da compositora passaram a ignorar a identidade da mãe. Forçada a se casar com um oficial escolhido pelo pai aos 13 anos de idade, a autora de “Lua Branca” e da marchinha “Ô Abre Alas” largou, aos 18, três de seus quatro filhos para viver com um engenheiro ferroviário. Depois, nova união com um flautista. Foi seu passaporte para a boemia: conheceu os chorões, influência maior de sua música, que emprestava sabor todo especial à mistura de ritmos europeus. Nasceram assim seus tangos, maxixes, lundus, mazurcas e valsas. Malvista pela fina sociedade, chegou a reger a Banda da Polícia Militar!