Foi padecendo da perda daquilo que lhe era mais caro que Ludwig Van Beethoven compôs, já em quase oclusão dos ouvidos, alguns dos seus melhores quartetos de cordas, sui generis e abstratos. Se soam modernos para a época, pura consequência do que lhe ocorria na mente. Ludwig passou a usar artefatos e espécies de cornetas de diversos tamanhos, no desespero de ouvir seu arredor. Fez encomendas especiais ao construtor e inventor Maelzel, o mesmo que criara o metrônomo, aquela pequena pirâmide cujo pêndulo oscila, alternadamente, para marcar o tempo.
Em 1812, já assinava cartas de modo inusitado: “de seu fidelíssimo amigo surdo”. Notas, acordes e frases de seu ouvido interno passaram a lhe atordoar, mas deixavam-no mais livre ante as normas rígidas do classicismo, dos invejosos acadêmicos e da crítica. À parte a surdez que torturava seu espírito, a fama lhe era perversa, não sabia lidar com ela. Na primeira audição de sua nona sinfonia, talvez a mais importante obra sinfônica de todos os tempos, Ludwig, já totalmente surdo, após encerrado o último acorde demorou a voltar-se para a plateia. Tinha medo de vaias e um fracasso tremendo, mas ao virar-se para o público, só viu aplausos estrondosos.
Se é possível um surdo criar música, o que acontece com os que querem curtir lindas melodias? Helen Keller (1880-1968), ativista cega, surda e muda formada em Radcliffe (EUA), bem o mostrou. Sentia vibrações, e delas fazia o seu ouvido pessoal. “Ouvia” cantores a seu modo, e ao seu jeito manifestava sua opinião. Apresentaram-na ao mito Caruso, o tenor maior, e este pôs-se a cantar-lhe uma ária. Com os dedos tocando os lábios do tenor, sorria como se comentasse cada frase. Assim, seu ouvido interno sentia pelo tato sons de beleza tão grande que a inebriavam.
Mas a surdez de Beethoven não era como a de Keller, nascida sem os principais sentidos. A vida do compositor parece ter sido melancólica, o sofrimento marcou suas feições. Os retratos feitos pelos bons artistas destoam daquele vulgarizado, longos cabelos cuidadosamente revoltos como um ídolo pop, a exemplo dos pequenos bustos comuns de se ver encimando pianos domésticos. Vi a máscara mortuária dele, e não era o rosto de um boa-pinta, consoante os retratos romantizados, só retratavam sofrimento e amargor.
Apesar da aparência malcuidada e desleixo, o gênio de Bonn parecia agradar os corações das mulheres. Seria a compaixão feminina pelo sofrimento dele um charme a mais? As investidas amorosas de Ludwig eram discretas, volta e meia sobre suas alunas. (O pianista John Kamitsuka lembra que o piano a quatro mãos, tocado por duas pessoas sentadas lado a lado no mesmo instrumento, foi criado tanto para facultar a audição doméstica de peças como sinfonias – já que não havia meios de registrá-las em discos e afins – quanto para aproximar o professor de suas pupilas).
Levando adiante as simpatias femininas de Beethoven, as discussões intermináveis sobre quem teria sido a “amada imortal” do compositor, especulam que talvez a cunhada Johanna, como quer a ilação do cineasta Rose. Quem sabe Teresa de Brunswik ou a condessa Giulietta Guicciardi, ambas suas alunas? Em algumas cartas para sua misteriosa amada, Beethoven refere-se a um lugar chamado “K”. Seria referência ao balneário de Karlsbad ou a Korompa, onde a família Brunswik teria propriedade? Rose perdeu a oportunidade de fazer um filme interativo, em que os espectadores escolhem a resposta, versão apresentada no final.
Entre Beethoven e Keller, contrastam duas formas de se conviver com a surdez. Enquanto o primeiro se deixava levar pelos malefícios da doença, a segunda superou os obstáculos à ausência dos sentidos, escalou graus acadêmicos e alcançou notoriedade com seus estudos sobre o socialismo.
Em Beethoven, a surdez fora progressiva, em Keller de nascença. A do primeiro pode ter sido consequência de alguma outra moléstia ou a convivência com o epicentro da orquestra em alto volume, a Pair (perda auditiva por indução de ruído). Esta, irreversível, pode acometer músicos e plateias – vide o caso de shows de rock, funk e outros, em volume absurdo. Sirva de alerta um exemplo cotidiano: a poluição sonora e o absurdo volume dos sons automotivos.
Que ninguém amaldiçoe os donos dessas máquinas de fazer doido dizendo que logo estarão surdos, porque aos poucos elevarão o volume para continuarem ouvindo alto, daí mais surdez, e tome mais volume e assim vai, o cidadão resignado compartilhando à revelia a doença. O limite de ruído é de 90 dB (decibel, medida de volume) por oito horas, segundo o Departamento de Trabalho dos EUA, mas um acréscimo de apenas 5 dB reduz esse tempo máximo para a metade da jornada, quatro horas. A 100 dB, o dano começa em 15 minutos, e a 112 dB, apenas um minuto. A 140 dB, a perda neurossensorial tem início imediatamente. Para se ter uma ideia, um escritório fechado, em silêncio e sem condicionador de ar ligado, registra entre 40 e 60 dB de ruído local (existem apps gratuitos para a medição).
É possível paraplégicos, surdos, cegos ou mudos tocarem algum instrumento, cantarem? Sim, claro, observadas as condições de cada caso, escolha e objetivos. Novas tecnologias ajudam, como os metrônomos com luz piscante para surdos, que sentem a música no seu instrumento, pela vibração em seu corpo ou no chão.
A música, além de confortar os que perderam ou nasceram sem algum dos sentidos ou movimentos do corpo, é alimento do espírito e recompensa da vida.