Henrique Autran Dourado
A curiosidade humana não tem limites. Não gosto de responder a perguntas invasivas da minha vida ou de terceiros, opto pela evasiva: não sei, digo, mesmo sem saber sabendo. Uma vez, atacado por algum insight poético, ao ser perguntado sobre o falecimento de um avizinhado comum, lembrei João Cabral, em “Morte e Vida Severina”: “e foi morrida essa morte, irmão das almas, essa foi morte morrida ou foi matada?” Aproveitei a ideia súbita e respondi: essa morte foi morrida (apesar de que em Cabral a resposta foi “até que não foi morte morrida, irmão das almas, esta foi morte matada numa emboscada”). Devolvi uma reposta com a licença poética do mestre pernambucano, não era da conta do meu interlocutor, ele que ficasse sabendo por terceiros. E se eu dissesse que morreu de síndrome edemigênica, causa mortis de uma personalidade famosa que nos deixou recentemente, ou, se quiser, paniculite com sepse, o que viria a dar no mesmo. Bastaria ao curioso? Não, o franco-atirador fuxiqueiro quer uma resposta banal, que lhe baste aos ouvidos sem esforçar-lhe o cérebro. (Ressalvas para os que extravasam suas angústias em oração nas redes ou, mais ao seu alcance: “tiro, porrada ou bomba”, como disse o ícone das comunidades Valesca Popozuda, artista menos conhecida por seus dotes vocais do que por outros predicados).
Entrevero semelhante surge com “quanto custou?”, “vendeu por quanto?”, “pagou quanto?”, “quanto você ganha?” Que diabos interessa a um curioso a vida financeira de alguém? (Aprendi com minha mãe que este não é assunto para voz alta, se não por fofoca ao menos por segurança). Já dei sermão, expliquei que não se pergunta isso, fora se tiver muita intimidade, ou, como no caso da morte matada, aguarde-se elucubrando que alguma hora vai se tornar público. A imaginação nesses tempos de hoje nos remete à dos tempos de antanho: foi Covid, no primeiro caso, ou foi Aids, como no passado. No caso de doença infectocontagiosa, ainda há algum sentido: a prevenção, o controle endêmico, o alerta, se o “de cujus” era amigo ou parente, mas não convém sair por aí cuspindo suposições sem que haja absoluta convicção: Pode criar preconceito ou terror que não deveria existir, caso a informação seja falsa. Nos idos da eclosão da Aids, ninguém podia mudar de comportamento e principalmente emagrecer – quem não se lembra do sucesso da Rita Lee “Não, titia, eu não tô com leucemia”, a respeito de boatos? (“Que ideia mórbida, há há há há / que ideia sórdida, há há há há”).
“Operou de quê?” Ora, se a pessoa não diz é provável que não quer que se espalhe. Já se sabe que operar tem múltiplo significado: João opera uma máquina, Hans opera um cálculo, Márcia opera no mercado de capitais – e, na literatura, há o cortejado romance “Ópera dos Mortos”, de meu pai, Autran Dourado. (Mas, acima de tudo, só Deus opera milagres!). Como substantivo, há o italiano “opera”, obra, trabalho: como deixar de mencionar as belas encenações lírico-dramáticas do repertório operístico: “La Traviatta”, “Don Giovanni”, “Nabucco”, “Il Guarany”? Já cirurgicamente, opera-se uma verruga, o panarício de uma unha encravada, apendicite, pontes de safena ou mesmo um transplante de fígado ou coração. Então, operou o que ou de quem? Em “A Ópera”, 9° capítulo de “Dom Casmurro”, Machado de Assis deixa no ar: “Deus é o poeta. A música é de Satanás”.
O tipo curioso é uma daquelas crianças que mexe e fuça, cresce assim, quer saber de tudo e, salvo honrosas exceções, hoje quer buscar seu instinto e paixão embotados às custas da vida alheia. “E os teus desejos ferventes vão / batendo as asas na irrealidade / O que tu chamas paixão / é tão-somente curiosidade” – Manuel Bandeira, em “Poemeto Irônico” (1917) de “A Cinza das Horas”. Eu confesso que fui uma criança curiosa! Meu pai, bom mineiro interiorano da sabença de passarinhos, chamava-me “menino-curió” – em tupi-guarani curió é “amigo do homem”, que vive ciscando nas aldeias. Mas aquela curiosidade infantil, com os tempos, fui trocando pelo desejo indomável de saber, daí minha carreira de educador e pesquisador. “Mas veja, ilustre passageiro”, as grandes descobertas nasceram da curiosidade, com a mãozinha de algum acidente que derruba uma maçã na cabeça ou transborda a água do banho do cientista. Não me proponho a descobrir ou inventar nada grande como Newton ou Arquimedes, apenas sinto-me feliz quando compreendo alguma coisa nova, conquisto um degrauzinho de formiga que seja.
Mas afinal, fulano morreu de quê? E sicrano foi operado de quê? Se em sigilo, permanecerá guardado – “segredo entre três só matando dois”, diz o vulgo -, se importante para a comunidade, basta o suficiente, e se for para ajudar a desvendar um crime, uma ladroagem, abre-se o saco de verdades. Há de haver sempre um bom propósito. Delação não, delação é interesseira, embora ferramenta útil em nosso direito, nossa velha política, passando pela alcaguetagem. Com o advento descontrolado das redes sociais, o direito à vida privada anda cada vez mais rarefato! Mas veja, que curioso (opa!): no mundo político e das “celebridades” o que é privado pode tornar-se interessante para o (bem) ou malfalado se lembra aquela frase atribuída ao Carlos Imperial, inspirada no escritor Oscar Wilde e este no irlandês Henry King: “falem mal, mas falem de mim”.
Pensei em chamar este texto “A taxonomia dos curiosos”, mas pode servir de pós-título. (Taxonomia, segundo o Houaiss, “é a ciência que lida com a descrição, identificação dos organismos, individualmente ou em grupo”).