“Mon oncle d’Amérique” é um filme (1980) do francês Alain Resnais, autor também do amargo “Hiroshima, Meu Amor”. Na trama, um fazendeiro é diretor de uma empresa em fase de cortes de empregados. Convivem Janine Garnier, atriz de ambições e amante de um senhor casado, e Jean Le Gall, ativista político e escritor em crise existencial. Pano de fundo, as ideias do neurocientista Henri Laborit, também narrador do filme.
Segundo Laborit, há quatro elementos que regulam a conduta das pessoas: o consumo, a recompensa, a punição e a inação. Revolucionou a psiquiatria em 1952 ao introduzir novas drogas em alguns tratamentos e teve sua participação no filme duramente criticada pela comunidade científica. Era adepto do chamado behaviorismo, teoria que analisa indivíduos e animais pelo seu comportamento e associa as atitudes das pessoas às suas neuroses e doenças. É o retrato de uma intensa disputa no trabalho que leva a alucinações. Eis a América de Resnais.
Em busca dessa competição, do “fazer a América”, fui para os EUA em 1977, com chances para estudar nos melhores lugares e sonhando com trabalho. Mas já saindo do aeroporto de Boston veio o primeiro choque: um enorme outdoor parece que alertava para o que eu iria encontrar: “Competition. That’s what makes America great!” (Competição. É o que a faz a América grande). Uma nação erguida por 13 colônias de culturas e Igrejas diversas disputando terras, cultivo, gado e dinheiro. Competia-se dentro de cada uma e todas entre si. Mais tarde, ciência, esportes, jogatina, ascensão na vida, busca pela excelência em todas as atividades, ser a maior nação.
Em 1974, eu já havia estado em NY. Resolvi ir a um show do grupo de funk (nada daquilo que se ouve por aqui) Sly & the Family Stone, ritmo e balanço evocando o lema de George Clinton, “shake your ass and your mind will follow” (o “sacuda seu traseiro e sua mente seguirá”). Era no famoso Radio City Music Hall, e fui sozinho.
Lá, grupinhos e gangues davam medo. Recém-chegado, vi que tinha apenas uma nota de US$ 100 – o equivalente a coisa de R$ 1.900, em valores atuais. No caixa não havia troco, e um monte de pivetes cercou-me para “ajudar”. Salvou-me um contrabaixista de apelido Yinka, do Harlem, que veio ao meu encontro e foi logo se apresentando. Fomos ao show, um deslumbre, mas declinei do convite para ir ao gueto nova-iorquino ouvi-lo tocar. Seria às 2h da manhã, loucura.
Essa experiência de 1974 ajudou-me a lidar com a vida nos EUA a partir de 77. Ainda não estava em condições de competir para os bons cachês de orquestras, então fiz como muitos brasileiros, usei minha alma latina para ganhar algum dinheiro com música enquanto estudava. Surgiu um convite para tocar salsa com um violinista cubano de alcunha William Fox.
Metrô para Roxbury, saindo perto do New England Conservatory e cruzando a chamada “limit zone” (zona do limite). Basicamente, um bairro-gueto enorme, brancos, negros e latinos, brigas e sensação de insegurança à flor da pele. Mas precisava daquilo para me preparar para o ingresso no curso superior dos meus sonhos. Em uma das viagens, um sujeito, de pé no vagão, calmamente enrolou seu baseado e começou a fumá-lo. Ninguém deu a mínima. Claro, fiquei preocupado, imaginei polícia invadindo, essas coisas. Fui discreto, perguntei se ele não tinha medo de ser preso. Pronto: abriu a torneira, dizendo-se herói da guerra do Vietnã, vítima de uma bomba, puxou a barra da calça mostrando a prótese de madeira. E gritava salvei a América, ninguém manda em mim, coisas do gênero.
Muito comum ver esses ex-veteranos de guerra – e ex-presidiários – de todas as origens pelas ruas, alguns dóceis e outros nada, praguejando em voz alta para si mesmos. Ou com camisetas de recordação: “visit fascinating Vietnam”. Quando quietos, e não surtados, não incomodavam, mas não se sabia no que poderiam se transformar de repente. Mas ou eu tocava o barco ou terminaria por desconfiar e ter medo de todo mundo. A América já não era tão “Disneyworld e Hollywood” assim (conforme vou ilustrando neste espaço), mas o intento de estudar cada vez mais, seguindo os conselhos do professor, eram ouro – nunca aceite menos do que primeiro, disse.
Nós aqui temos bandidos e psicóticos. Americanos também (e têm terroristas de sobra, brotam da noite para o dia). Aqui, por um visto de turista ou estudante nos EUA vive-se uma odisseia. Meu permanente obtive lá mesmo, depois de anos, e só após interrogado sob juramento, o passado remexido. Nas filas dos consulados no Brasil é frequente candidatos a turista nos EUA terem o visto negado de pronto, às vezes sem saberem o porquê. Há muito tempo existe um rígido controle de entrada e o atual presidente americano ainda quer apertar mais e mais, vide o muro na fronteira com o México. Há um cuidado policialesco com quem quer entrar no país, mesmo que por via legal.
O Brasil é terra onde se plantando tudo dá, disse Vaz de Caminha. Do bom e do ruim, “banana pra dar e vender”. É positivo turistas injetarem recursos aqui, mas não dá para “fazer o bem sem olhar a quem”. Enquanto isso, nossos marginais de estimação sequer viajam para os EUA. E não apenas os turistas americanos – jovens, casais de idosos, recém-casados e yuppies – terão aqui as portas abertas, o perigo também terá. A massa entrando livremente não terá rosto nem passado, e pode haver consequências. Enquanto isso, nossos pivetes, punguistas e organizações criminosas também estarão ávidos por fazer a festa que nos dá fama. Haverá competição.