Marlos Nobre, Quixote pernambucano





Câmara Municipal do Recife: música é prioridade

Marlos Nobre é brasileiro, recifense e cidadão do mundo, um ícone da nossa música. Aos 76, tem a energia de um jovem que luta e obtém o que se propõe, como todo bom vencedor. Pianista, compositor, regente, é considerado por vários críticos europeus o maior compositor vivo do continente ibero-americano (MARCO, Tomás. “Cuadernos de Música”. Madrid: Fundación Autor, 2006). Ao ouvir sua obra, é difícil confundi-la com a de qualquer outro compositor brasileiro: tem a digital marcada na identidade artística. É brasileiro de corpo e alma, e, embora nunca tenha sido um nacionalista ferrenho, deixa sua veia regional regar todas as melhores influências. E comungo da opinião de Tomás Marco, no livro “Marlos Nobre, el Sonido del Realismo Mágico”: “As obras de Nobre possuem um magnetismo e uma força que as fazem irresistíveis”. É inevitável a remissão de uma expressão do título deste livro, que fala em “realismo mágico”, a outro latino, o escritor colombiano Gabriel García Márquez, especialmente com referência à sua mítica cidade Macondo, de “Cem Anos de Solidão”.

Títulos e cargos, ele os tem de sobra. Foi presidente da Funarte, do Conselho Internacional de Música da Unesco, em Paris, e da Rádio MEC, entre inúmeros outros. Primeiro brasileiro a reger a Royal Philarmonic Orchesta, também esteve à frente da prestigiosa ORTF francesa, a do Teatro Colón e outras. Tem assento na cadeira nº 1, de Villa-Lobos, na Academia Brasileira de Música. Porém, seus títulos maiores não são cargos e láureas, eles têm nome: “Convergências e Desafio VII para Piano e Orquestra”, “Rythmetron”, para 10 percussionistas, todas de 1968, “Biosfera”, de 1970, “Mosaico” e “Passacaglia” para grande orquestra, ambas de 1997, entre quase 250 outras. Sua origem brasileira predomina sobre as influências de seus grandes mestres: Messiaen, Ginastera, Copland, Dallapiccola, Gunther Schuller e Guarnieri, entre outros. Sua escrita é obra de tapeçaria intricada, absolutamente pessoal e inconfundível.

Conheci Marlos Nobre visitando meus pais no Brasil, por volta de 1980, no Rio. Ele estava na Rádio MEC, à frente de um projeto de reestruturação para a Sinfônica Nacional. Achou que eu poderia colaborar, e, logo que voltei definitivamente ao país em 1982, fui ao seu apartamento e de sua esposa, Maria Luiza Colker Nobre, excelente pianista. Marlos estava se retirando do projeto, atropelado pela imensa burocracia brasileira. Porém, nossa amizade começara musicalmente, como não poderia deixar de ser: colaborei para a edição e estreei em Boston, em 1981, seu “Desafio IV para Contrabaixo e Piano”. Obra bastante complexa, demandou-me estudo dedicado. Na plateia, o saudoso Steven Brewster, então spalla (solista de naipe) dos contrabaixos da Sinfônica Nacional de Washington de Rostropovich: “foi uma das melhores coisas que ouvi nos últimos 20 anos!”.

Nobre é diretor artístico infatigável da Orquestra Sinfônica do Recife, talvez a mais antiga do Brasil em trabalho contínuo, 82 anos de vida! O conjunto foi criado com a participação de Ernani Braga (1888-1948) e o maestro Vicente Fittipaldi. Teve entre seus regentes Eleazar de Carvalho, que ousou avançar no repertório, seguido por seu assistente, o saudoso Eugene Egan, que o substituiu, maestro e violinista, com quem tive o prazer de tocar em um grupo de câmara. O Nobre regente de hoje retoma a linha de trabalho de crescimento da orquestra, e faz um trabalho de formiga até no verão, mas com fôlego de gigante. Ergueu o grupo, e graças ao seu carisma tem projetado a Sinfônica do Recife como um novo paradigma de crescimento musical no país. Lembro-me de Eleazar de Carvalho afirmando que uma orquestra não se faz em dez anos, mas em cem. Marcará época.

A casa da orquestra é o famoso Teatro de Santa Isabel, projeto neoclássico de grande beleza do francês Louis Léger Vauthier que completa este anos 165 de existência, um dos mais belos e imponentes prédios do Império. Bem mais antigo do que os grandes Colón de Buenos Aires (1908) e os municipais do Rio (1909) e São Paulo (1911), além do famoso Palais Garnier (Opera de Paris), de 1875. Já recebeu Carlos Gomes, a bailarina Anna Pavlova, Jasha Heifetz e muitos outros. Ter uma casa como essas ajuda a Sinfônica do Recife a crescer em sonoridade, com a acústica incomparável das grandes construções antigas.

Marlos Nobre tem lutado por seu grupo como bom quixote, obcecado em dedicar-lhe de presente à terra que lhe foi mãe, e galgando todas as etapas para a melhor profissionalização da Sinfônica. Do último dia 16 de novembro, encerrou a temporada de 2016 com sua Passacaglia para grande orquestra e a imponente “Sétima Sinfonia” de Beethoven. Antes disso, porém, foi em pessoa batalhar por uma ajuda de custo que elevasse o salário dos músicos a um patamar mais digno, o que neste momento de crise é tarefa para um mestre tanto no pódio quanto na articulação dos bastidores e coxias. Porém, com o legado cultural da cidade, toda a cultura herdada dos anos holandeses e sua vocação artística, ainda conseguiu, no dia 9 de novembro, a aprovação da Comissão de Legislação e Justiça do projeto de lei que beneficia seus músicos. O relator, Raul Jungmann, afirmou que a orquestra exerce um papel fundamental na formação da sociedade não só de Recife, mas de todo o Brasil.

É preciso ser mais do que um grande compositor, um mestre, há que se compartilhar a arte de ser nobre e tornar-se exemplo para todo o país. “Noblesse oblige”.