“Bossa-nova mesmo é ser presidente / desta terra descoberta por Cabral / para tanto basta ser tão simplesmente / simpático, risonho, original”. Juca Chaves, aliás Jurandyr Czaczkes, fazia críticas aos políticos de todos os tempos, com seu humor cáustico e irreverente. “Brasil já foi à guerra / comprou porta-aviões / um viva pra Inglaterra / de oitenta e dois milhões”. Qualquer assunto era motivo para uma chacota musical, brincadeira crítica que atraía o público para suas apresentações, com um banquinho e um violão.
As críticas às “mordomias” de JK, se comparadas com as aberrações surreais por parte de muitos políticos de hoje, eram contos da carochinha. Mas rendiam discos, shows, e ajudavam “o Juquinha a comprar o seu iate”, dizia ele, esculachando ainda mais a cena, criando uma caricatura de si mesmo e jogando tudo no mesmo balaio. Era o Juca. Pouco depois disso, mais precisamente em 1964, viria o golpe e tal tipo de anedota – “presidente bossa-nova” – não passaria da metade do show. As mordomias e cambalachos do regime eram sussurrados no breu das ruas, nos cantos dos pátios das universidades e nos escuros dos bares, sempre sob a nuvem do medo.
JK cercou-se de intelectuais e artistas. Fora os escritores que com ele trabalhavam, como Autran Dourado (meu pai), Geraldo Carneiro, Augusto Frederico Schmidt, Álvaro Lins e Nilo Aparecida, ligava-se a artistas plásticos como Guignard, Portinari e outros. Famoso “pé de valsa”, conhecido dançarino daquele tipo de estilo galante, tinha um apreço especial pela música e os músicos (aliás, conheceu dona Sarah, com quem viria a se casar, em um “arrasta-pé”). Circulavam no Palácio gente como o violeiro Renato Andrade, caipira mineiro de alta técnica instrumental, e o grande mito do violão Dilermando Reis, que chegou a dar aulas para minha irmã.
Talvez nenhum governante tenha tido um músico – sim, pasme, músico! – da mais alta reputação como assessor: o grande Camargo Guarnieri, talvez o maior compositor de nossa história. JK tratou de regularizar a situação trabalhista da classe, antes largada à sorte e insegurança, e deu-lhe status profissional, reconhecendo a profissão na CLT. Ao mesmo tempo, criou a Ordem dos Músicos do Brasil (OMB), tendo à frente dois baluartes: o maestro Eleazar de Carvalho, que regeu na inauguração de Brasília, e José Siqueira, compositor e professor de altos coturnos, pesquisador, e idealizador da Ordem, fora Villa-Lobos, Gnatalli e Mignone.
Mais uma vez, bastaram quatro anos para que o golpe de 64 interviesse, pois “sindicatos estavam cheios de comunistas” (sic). Eleazar era um maçom conhecido pelas posições conservadoras, e Siqueira podia ter sua quedinha pela esquerda, mas era inofensivo (tempos em que o governo pediu à CIA americana que vigiasse os passos de Jorge Amado!). Voltando a 1960, JK também criou a Orquestra Sinfônica Nacional, hoje ligada à Universidade Federal Fluminense. Fundou a Universidade de Brasília (obra de Niemeyer), por insistência do Darcy Ribeiro, para que a nova capital não se tornasse “uma cidade interiorana ao invés de grande centro à altura”, argumentou meu pai, que ainda conseguiu o tombamento da obra de Machado de Assis. JK também criou o Teatro Nacional de Brasília.
Em 1964, o sonho acabou e foi entronizado presidente – interventor da Ordem dos Músicos o Sr. Wilson Sandoli, obscuro cantor de boate de ligações nebulosas com o regime, que, graças a inúmeros artifícios, conseguiu capitanear a autarquia e todos os seus descaminhos por longos 42 anos! Toda a boa intenção de JK malogrou com a ditadura, que transformou a OMB em simples fonte de arrecadação de contribuições, braço do regime e nada mais. Paralelamente, na música popular, no fim dos anos 1950, no auge da efervescência, surgia ainda o movimento que mudou as perspectivas para o futuro: a bossa nova.
Para planejar Brasília, JK chamou o urbanista Lúcio Costa e o arquiteto Niemeyer. Cercado pela intelectualidade brasileira, criou uma imagem de defensor da Cultura nacional e desenvolvimentista – os “50 anos em cinco”. Nesse ponto, JK não teve alguém sequer à sua sombra em nossa história. Não usava a música de forma populista, como fez Getúlio e seus “músicos práticos”, que bem lhe serviam em comícios, campanhas e andanças de autopromoção, em tempos em que não se sonhava com TV, aplicativos, redes sociais e outras mídias.
Período de tamanha fertilidade intelectual e artística, e de tal apoio à Cultura e à música em particular, como foi o de JK, talvez tenha sido apenas o de D. João VI, nos 13 anos em que esteve no Brasil. Com sua vinda, trouxe a capital do país para o Rio de Janeiro, e, por absoluta necessidade, criou a Real Biblioteca Pública (hoje Biblioteca Nacional), com um acervo inicial de 60 mil volumes. Em 1808, ano de sua chegada, D. João criou a primeira gráfica do país, e passou-se a rodar a “Gazeta do Rio de Janeiro” com máquinas próprias – antes disso, o “Correio Braziliense” era impresso na Inglaterra! Fundou ainda a Real Academia de Belas Artes, restaurou e reabriu o Museu de História Natural.
Investiu no compositor Pe. José Maurício, um grande nome da música de concerto, talento elogiadíssimo até no exterior, nomeando-o organista da Capela Real. Trouxe o maior compositor lusitano da época, Marcos Portugal, e o austríaco Segismund von Neukomm, ex-aluno de Haydn, que foi professor, entre outros, de Francisco Manuel de Silva, autor do Hino Nacional.
Fora JK e D. João, o resto é o resto.