Henrique Autran Dourado
Era o ano de 1961, da posse e da velada tentativa de autogolpe de Jânio Quadros, em agosto. Havia tensão, e o clima um tanto conturbado, para variar, frequentemente escorregava para a anedota (não havia redes sociais!). Como aquela que se referia ao presidente estrábico e de pés tortos, na piada um índio querendo apito – claro, o poder. Haroldo Lobo e Milton de Oliveira lançaram um tremendo sucesso, inspirado na anedota: “ê ê ê ê ê / índio quer apito / se não der pau vai comer” – assíduo nos Carnavais de décadas, mesmo que após aqueles tempos não se soubesse de que político se falava. Mas que era certo político, todo mundo sabia. Já uma índia suavizava o clima: a versão para o português de uma guarânia dos paraguaios Assunción Flores e Manuel Guerrero feita por José Fortuna em 1952: “Índia / seus cabelos nos ombros caídos / negros como a noite que não tem luar / seus lábios de rosa / para mim sorrindo…” Tem ainda a divertida “A índia vai ter neném / mais um, mais um, mais um que vem / Depois que vem o ‘baby’ / chefe pinta o ‘baby’ de urucum” (Dircinha Batista, 1964).
Em 2011, escrevi para o jornal O Progresso o artigo “Geografia do Brasil”, passando por cidades, morros, baías, praias e rios de nomes indígenas: Guanabara, Arariboia, Carioca, Anhanguera, Piracicaba, Chuí, Tietê, Paranapiacaba, enfim, um pequeno glossário. A cada lugar por que meu texto passava, a tradução para o português e menção a algum personagem histórico local. Em Pindamonhangaba (lugar onde os anzóis são feitos, em tupi-guarani), fiz menção, sem citar o nome, a “um menino predestinado, já três vezes governador”. Passado um tempo, recebi uma dedicatória em papel timbrado do Gabinete do Governador, que reproduzo sem falsa modéstia: “Henrique Autran Dourado, com o seu talento a Geografia do Brasil ficou melhor. Seu artigo enaltece lugares, fatos e personagens importantes da nossa história, ao lado dos quais muito me honrou a sua referência. Parabéns! Abraço do Geraldo Alckmin” (por ironia, hoje vice-presidente da República). Alguém lhe teria entregado um exemplar do jornal em uma passagem por Pindamonhangaba.
Boa parte do nosso vocabulário, as influências musicais, nossa culinária, turismo – parece tão fácil ir a Ipanema ou Ubatuba sem saber onde estamos -, são tantas as raízes que talvez seja preferível fingir que não vemos ou sabemos, ou que nos é realmente desconhecido. Do Jobim de “… braços abertos sobre a Guanabara”, da “Garota de Ipanema”, do “Urubu” ou do “quero me casar com Janaína” (do Edu Lobo, Yemanjá na cultura mesclada afro-indígena), lá estão nossos povos originários, os que nos antecederam; da nossa mandioca, tapioca, ambas do tupi, o aipim, o açaí, o abacaxi, moqueca, pipoca, jaboticaba, quindim… O que seria do canto do sabiá, do jogo no Maracanã? Pois são sete grupos de línguas tais como arikém, juruna, mondé, mundurukú, ramaráma, tuparí, e só no tupi-guarani são 21, mais três isoladas: aweti, puruborá e sateré-mawé (fonte: EBC).
Existe um povo especial, o yanomami, cujas origens na região datam mais de um milênio. Teriam tomado posse das cabeceiras dos rios Parima e Orinoco, e lá desenvolveram suas próprias línguas (até o final do século 19, os yanomami não conheciam senão poucas tribos indígenas, e o homem branco lhes era desconhecido). A partir de 1970/80, em Roraima, eles tiveram contato com colonização, fazendas, obras, serrarias e garimpos, invasão que provocou “um choque epidemiológico de grande magnitude, causando altas perdas demográficas, uma degradação sanitária” (fonte: PIB/SA).
A visão do líder Davi Kopenava Yanomami pode até ter alguma poesia, de tão rica, mas é apocalíptica: “A terra-floresta só pode morrer se for destruída pelos brancos. Então, os riachos sumirão, a terra ficará friável, as árvores secarão e as pedras das montanhas racharão com o calor. Os espíritos xapiripë, que moram nas serras e ficam brincando na floresta, acabarão fugindo. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los para nos proteger. A terra-floresta se tornará seca e vazia. Os xamãs não poderão mais deter as fumaças-epidemias e os seres maléficos que nos adoecem. Assim, todos morrerão.” Em 2011, os yanomami eram, entre o Brasil e a Venezuela, 35 mil, e hoje se estima em 30 mil. No Brasil, seus 95.650 km² de floresta tropical são reconhecidos “por sua alta relevância em termos de proteção da biodiversidade amazônica e foram homologados por um decreto presidencial de 25/05/1992” (Bruce Albert, IRD).
Apenas em 2022 o desmatamento pelo garimpo ilegal na terra yanomami aumentou 25%, ou seja, um quarto (Inpe). Malária, diarreia, desnutrição e, principalmente, doenças causadas pelo venenoso mercúrio usado no garimpo, são os principais vilões do massacre indígena. Somente no dia 26/01 foram seis mortos. O Hospital da Criança, em Boa Vista, tinha, naquela data, 64 pacientes internados, sendo sete em UTIs, e a Casai (Casa de Saúde Indígena) 700 yanomamis aguardando atendimento. Quase cem crianças indígenas morreram no ano passado pelas mesmas causas – 570 crianças em poucos anos!
Há conscientização e até mobilização internacional sobre o assunto, que pensa em vidas e no meio ambiente como um todo: os olhos do planeta se voltam para as reservas, onde o quadro é doloroso como no triste poema “Rosa de Hiroshima”, de Vinicius de Moraes: “Pensem nas crianças / mudas telepáticas / pensem nas meninas / cegas inexatas / (…) pensem nas feridas /como rosas cálidas”. Pensem e reflitam.