(Cont.) Naquela noite, na cidade de Americana, após soarem os primeiros acordes do Hino Nacional sob a batuta do maestro Colaccioppo, o palco simplesmente ruiu com quase uma centena de pessoas em omelete de pó, madeira, partituras e instrumentistas. Perderam-se 11 instrumentos, mas, apesar dos feridos, não houve vítima fatal, ou o trauma teria sido muito pior. Vítima foi a conta bancária dos músicos: a administração demorou diversos anos para repor o gasto de caríssimos instrumentos.
Era prefeito Jânio Quadros, que se limitou à proibição via um de seus bilhetinhos-decretos da saída da orquestra da cidade, salvo por autorização expressa. No Teatro Municipal, cuja reforma a Prefeitura tentava concluir, entre factoides e “vassouras”, os mal pagos músicos estariam mais seguros. Esqueceu-se ele dos diversos anos medíocres durante os quais a OSM ensaiou e se apresentou na Sala Cidade de São Paulo, um velho, malconservado e pulguento cinema.
Com seu jeito histriônico, foi Jânio quem proibiu, com outro de seus bilhetinhos, que se pagasse um cachê de US$ 300 mil para Luciano Pavarotti se apresentar no município. A soma seria altíssima, mas, diante dos cada vez mais exorbitantes pagamentos para solistas “importados” no Brasil… (Aliás, somente para o fisco italiano o tenor devia US$ 3 mi, por conta dos anos 1989/1991. Apenas a parte do fisco, bem entendido). Pavarotti aceitou fazer um comercial para automóveis de luxo, mas impôs duas condições: que o pagamento fosse pago “in cash”, iludindo o fisco e a ex-esposa, e que constasse que o artista havia doado seu cachê a uma instituição beneficente (sic).
Na época do “affair” Pavarotti, Jânio teria dito: “Por tal soma canto eu”. Autoritário que era, não fê-lo porque não qui-lo. (Muito antes dele, tendo o visconde de Taunay procurado D. Pedro II para bancar uma produção de 40 contos da ópera “Lo Schiavo”, ouviu do imperador que não pagava tal quantia por escravo algum, nem do Carlos Gomes). Jânio ganhou, ao seu estilo, bom espaço na mídia, desconhecendo os aplausos dedicados a Pavarotti após uma apresentação em Berlim de “L’ Élisir d’ Amore”, de Donizetti, em 1988: nada menos do que uma hora de ovação, honraria que obrigou o “primo tenore” a retornar ao palco exatas 167 vezes.
De volta ao Hino, talvez a própria poesia tenha sido concebida como estímulo à cultura erudita nas “ignaras” massas. Hoje em dia, com os índices de analfabetismo menores do que há 70 anos, já é quase impossível encontrar quem compreenda aquelas linhas – veja nossas seleções de futebol “cantando” com mímica labial, perfiladas e mão no peito. O que se passava na cabeça do autor do poema, Osório Duque-Estrada (1870-1927)? A letra diz assim: “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas / de um povo heroico o brado retumbante / e o sol da liberdade em raios fúlgidos / brilhou no céu da pátria nesse instante…” Mas bem poderia ser entendida assim: “As margens calmas do rio Ipiranga / fizeram ouvir o grito forte de um povo heroico / e o sol da liberdade em raios cintilantes / brilhou no céu da pátria naquele instante.”
Do alto de sua erudição parnasiana, Duque-Estrada elucubrou tudo isso. O diabo, mesmo, era conseguir rimar, daí tanto dicionário (havia aquele colossal, o Morais Silva, do séc. 18) e tanta ordem inversa. Curioso, também, é que Deodoro, no afã de encontrar um hino para a debutante República dos Estados Unidos do Brazil, promoveu um concurso nacional do qual saiu vencedor Leopoldo Miguez (1850/1902). Em um arroubo de imperador – talvez preferisse estar de cetro e coroa -, Deodoro simplesmente atropelou a decisão soberana da comissão julgadora e proclamou, tal qual a República, a vitória do segundo colocado, dizendo atender ao “clamor popular”. Não se sabe se Miguez recebeu seu prêmio, mas calou-se, pois já havia obtido a graça da nomeação para diretor do Instituto Nacional de Música, antigo Conservatório Nacional.
O que poucos sabem é que somente em 1922 a letra de Duque-Estrada, escrita mais de uma década antes, foi agregada oficialmente pelo Congresso ao Hino Nacional. E no mesmíssimo ano da Semana Modernista, talvez a fase mais rica do conjunto da produção artística nacional: quadros de Tarsila, loucuras de Oswald e Mário de Andrade, poesias de Drummond e del Picchia, a riqueza melódica e harmônica de Villa-Lobos… Pois a letra de Osório deve ter soado tão contemporânea para os modernistas quanto pareceriam aos roqueiros de hoje os acordes das espinetas e cravos imperiais. Com certeza, os donos do poder oficializaram a letra de Osório porque, além de ele ser positivista, era austera, culta e conservadora, e as ideias daquela turma da Semana de 22, além de malucas, eram “subversivas” e perigosas, incomodavam de forma especial as elites e nobres congressistas.
Naqueles tempos, Villa-Lobos, mesmo confuso ideologicamente, estava com certeza muito louco quando resolveu montar um coral com 40 mil vozes no estádio do Vasco da Gama do Rio de Janeiro. Mais ainda, parece, quando convenceu o governo de que a cadeira de canto orfeônico deveria ser incluída no currículo de todas as escolas do país. “Ora”, devem ter pensado, “o sujeito é louco, mas vai entrar para a história. É um bocado de voto”! Mas, triste fim, a disciplina deixou de ser parte do currículo escolar, virou optativa pela LDB 4.024 de 1961, e sucumbiu à LDB de 1971, que criou a educação artística: ou seja, professores que sabiam quase nada de uma das artes mais a fundo ensinando todas. (Continua).