Até há pouco, seguia viçosa e desenvolta a retórica de que uma tentacular conspiração marxista agia obscuramente em todas as instâncias da sociedade com o propósito de “dominar o mundo”.
À parte o caráter risível de desenho animado de mais essa fé nas teorias das conspirações, fato é que se convenceu incontáveis cidadãos acerca da existência de uma guerra, algo básico e oportuno a extremistas.
A percepção desse suposto embate tem sustentado uma política de conflitos, de desagregação, do tipo que divide os “inimigos” para vencer. Graças à convicção nesse delírio belicista, o país tem se mantido em clima de “nós contra eles” há anos. Até agora, contudo.
A realidade mudou, passando de uma guerra imaginária para uma real, em que não se encontram Che Guevaras disfarçados de professores – até porque eles nunca existiram tal como alardeado em campanhas políticas, as quais insistem em não se encerrar, mesmo após o fim da contagem dos votos.
Não, agora a coisa é séria! Os inimigos chegaram e já estão causando destruição e, o mais grave, perdas de vidas. Esse inimigo não usa camiseta vermelha, tampouco estudou pela cartilha de Paulo Freire; ele sequer pode ser visto a olho nu.
E, de repente, de uma Operação Lava Jato, que prometia higienizar o Brasil – mas acabou tonando-se muito mais um instrumento político -, o que mais o país precisa é, simplesmente, manter a operação constante de lavar as mãos – com calma e cuidado, jamais “a jato”.
Agora, a guerra é pra valer! E, então, um problema grave: muitos que se valeram da guerra imaginária, quando deparados com o enorme desafio de um conflito real – especialmente este, que não se ganha com bazuca e tanque na rua, muito menos com golpe de estado e ditadura -, não demonstram a mínima capacidade para irem à luta.
Uma vez que, efetivamente, esta guerra pode levar à morte incontáveis seres humanos, as paranoias, delírios, radicalismos e interesses políticos mesquinhos precisam dar lugar aos verdadeiros soldados, aqueles mais aptos a salvar vidas.
Em momento tão grave, seguir apostando na discórdia, na desinformação, nos “gabinetes do ódio”, na minimização dos verdadeiros inimigos e nos ataques à imprensa não se trata apenas de colossal erro, mas até de ato criminoso.
Porém, a tática de cisão social bem-sucedida até a explosão da pandemia, por certo, só se manteve porque boa parte da população a apoia. Não fosse assim, jamais um dirigente seguiria no cargo se estimulasse seguidas agressões aos demais Poderes, em indisfarçáveis e sistemáticos atentados contra a democracia.
É de se pensar que a prática passava batido porque, enfim, a democracia perdeu importância para muitos cidadãos. Contudo, certamente, para estes e todos os demais, a vida ainda tem valor – mesmo a dos “idosos”, que podem ser nossos pais e avós.
E aí se encontra o ponto da virada, que bem poderia ser entendido como Dia D, como um desembarque na Normandia a favor de uma nova “reconciliação” nacional em nome da saúde e, por derradeiro, da vida.
Isto porque poucos aceitariam perder o pai e a mãe, perder os avós, em benefício da economia nacional. Sim, vamos (quase) todos ficar mais pobres; sim, um dia todos morrem.
Não obstante, todos – pelo menos os que carregam um mínimo de sensibilidade e decência -, torcem para que esses dias de dor, da perda de amigos e familiares, demorem o máximo possível. Assim, não agir para postergar a morte é, simplesmente, desumano.
São tantos os aspectos negativos com que algumas autoridades estão tratando a pandemia que, francamente, fica até difícil comentar sobre tudo. Portanto, fiquemos com apenas alguns.
Primeiro, conforme praticamente todas as autoridades sanitárias e os especialistas em infectologia mundo afora, a maneira ainda mais eficaz de se proteger contra o coronavírus é o isolamento social. Posicionar-se contra isto é um erro estratégico brutal, pelo menos do ponto de vista da saúde pública.
Claro, pela visão da política de belicismo insensível, a tática de colocar a população em geral para fora de casa, levando-a ao front do trabalho diário, como se nada de extraordinário estivesse ocorrendo, é perfeitamente lógica segundo, pelo menos, uma das mais tradicionais táticas de combate.
Ou seja, todos sabem que, para ganhar guerras, é preciso ter o chamado “bucha de canhão”, aquele soldado menos qualificado, cuja vida é de menor valor e que, portanto, é jogado à frente da batalha, para dar sua vida a favor da “causa”.
A “causa” do momento, para muitas autoridades e outros tantos megaempreendedores, é “salvar a economia” brasileira – esse “montinho Castelo” cujo desmoronamento é inevitável. Já as buchas de canhão, obviamente, seriam os idosos e demais integrantes do chamado grupo de risco.
Segunda questão: continuar culpando o carteiro pela triste notícia da carta é algo também irresponsável, além de tirânico.
Irresponsável porque, de maneira explícita e vital, a imprensa profissional tem servido aos interesses públicos. Informações confiáveis e corretas são fundamentais para se preservar vidas em guerras como esta, em meio à qual a desinformação só deveria interessar ao inimigo – hoje, um vírus que tanto mais se propaga entre pessoas quanto se compartilha em fake news por redes sociais.
Tirânico, porque busca desqualificar justamente os meios de comunicação, que tão somente cumprem a função fundamental de informar a população, ajudando-lhe, por conseguinte, a preservar-lhe a vida e a dos seus – idosos, inclusive!
No entanto, também há lógica, do ponto de vista bélico, em atacar a imprensa. Por ela, afinal, os equívocos, erros, incoerências, oportunismos, incapacidades, irresponsabilidades e desonestidades são levadas a público – e para todos, não somente para grupos fechados em seus cercadinhos ideológicos.
Se possível, acabar com a imprensa – tal como com a democracia – seria imensa vitória às pretensões obscuras – aliás, essas que tanto menosprezaram a ciência e, agora, recorrem a ela na esperança de sobrevivência (embora não necessariamente dos “velhos”, pelo visto…).
Enfim, o ponto da virada já pode estar acontecendo. Mostra disto é que exatamente a imprensa – assim como a ciência -, de algo fútil, desnecessário, senão supostamente manipulador, volta a ser ponto de referência, uma das mais sólidas tábuas de salvação.
Pesquisa Datafolha, publicada nesta semana, evidencia o fato: jornais e TVs à frente, os meios de comunicação da imprensa profissional foram apontados pela população como os mais confiáveis na divulgação de informações sobre a pandemia.
Por sua vez, onde principalmente os oportunistas colocam seus soldados fanáticos para a guerra imaginária, as redes sociais e aplicativos de mensagens são vistos como pouco confiáveis.
Segundo o levantamento, programas jornalísticos da TV (61%) e jornais impressos (56%) lideram no índice de confiança, seguidos por programas jornalísticos de rádio (50%) e sites de notícias (38%).
Em posição oposta à imprensa profissional, estão os conteúdos de WhatsApp e Facebook. Nas duas plataformas, apenas 12% dizem confiar em informações sobre o coronavírus. Nelas, o índice dos que dizem não confiar nas informações atinge 58% (WhatsApp) e 50% (Facebook).
Por outro lado, o índice dos que dizem não confiar nas informações sobre a pandemia é de 11% nos jornais e de 12% nos telejornais. Os sites de notícias têm a desconfiança de 22%.
Se há um aspecto positivo na tragédia atual é a de que, diferentemente das imaginárias, pelo menos nas guerras reais é possível diferenciar melhor os verdadeiros heróis dos facínoras. E mais ainda nesta, em que o objetivo maior não é matar inimigos, mas salvar o maior número de vidas possível.
Quem não militar nesta fileira em favor da vida, bem poderia ser tratado como criminoso de guerra. Esse sim, mais que qualquer outro, deveria ser afastado do convívio social – e, quem sabe, até da vida púbica –, senão recluso em alguma obscura caserna, ao menos condenado ao ostracismo.