Há algo em comum entre os dois gênios, mas não a origem e a personalidade. Guarnieri passou 16 anos da vida em sua Tietê, São Paulo, largando o segundo ano do “grupo escolar” para buscar na capital melhores chances para sua música. Villa-Lobos, carioca expansivo, gozador de rompantes histriônicos, compunha até deitado de bruços no chão, ouvindo novelas de rádio.
Guarnieri e Villa, cada um a seu jeito, romperam as fronteiras do Brasil e se lançaram ao mundo. O Villa do choro e da boemia carioca alcançou reconhecimento mundial como “globe-trotter”. Já Guarnieri viajava, mas tinha o coração no interior, junto à invejável técnica que adquirira devido a uma facilidade extraordinária. Não se importava com marketing, era comedido e simpático como bom caipira.
Em um jantar na casa do maestro Eleazar de Carvalho, o assistente Diogo Pacheco contou-me um episódio. Rapazinho, cantor do Coral Paulistano do Theatro Municipal de SP, ele passeava pela Praia Vermelha, no Rio, e na direção contrária vinha caminhando Villa-Lobos. Abordou o maestro e puxou assunto, dizendo que o Coral havia cantado uma linda Ave-Maria dele. Villa: “Mas qual? Já compus mais de mil!”
Vinte anos depois, quando do lançamento de sua biografia, Diogo respondia a indagações dos presentes. Eu fui o último: quantas Ave-Marias Villa-Lobos escreveu? Todos surpresos, Pacheco contou a história, e, curioso, perguntou-me como eu sabia daquilo. Lembrei-lhe do jantar, e ele iniciou o autógrafo: “Henrique, sabe que você também é muito divertido?” (Deu troco a uma brincadeira minha do passado).
Conheci Guarnieri primeiro conversando no intervalo, quando ele ia reger a Osesp, depois no aniversário de seus 80 anos e no Clube Paulistano, onde umas duas vezes fui com meu filho, “Baby Lucas”, e o neto do compositor, “Baby Alexandre” (hoje homens bem-sucedidos). Enquanto as crianças brincavam no parquinho, eu respirava palavras sábias, absorvendo o máximo, como um aprendiz de feiticeiro diante de um grande bruxo. Modesto, de tiradas geniais, ao compor era intricado como Brahms e dono de uma costura musical que tem algo a ver com o complexo bordado literário de meu pai.
Se Guarnieri foi o caipira que conquistou o mundo, Villa-Lobos foi o carioca que o fez a seu jeito, e para conhecer bem sua terra teve de explorá-la. Magnifico é o depoimento “Excursão Artística Villa-Lobos”, de Antonio Chechim Filho, publicação familiar de 1987, de cuja neta, Katia, ganhei um exemplar em 2008. Chechim era funcionário da Fábrica de Pianos Brasil e, como técnico e afinador do grupo, participou da “Excursão”.
O grupo contava com Villa, violoncelista e líder, os pianistas Souza Lima, Antonieta Rudge e Lucila Villa-Lobos; cantoras, Nair Duarte Nunes e Anita Gonçalves. A grandiosa viagem foi em 1931, o grupo sacudindo nas estradas de ferro, conhecendo e se apresentando em quase cem cidades de São Paulo (Tatuí foi a de nº 43!). No trajeto entre Bauru e Matão, apesar dos sacolejos e apitos do trem, Villa, absorto, escreveu “O Trenzinho do Caipira”, para violoncelo e piano, e antes mesmo da chegada havia terminado a obra. Em versão orquestral, “O Trenzinho” tornou-se a “Tocata” (4º Mvt.) de sua linda “Bachianas Brasileiras nº 2”.
Segundo Chechim, foram oito etapas: (1) Campinas-Barretos, 8 cidades; (2) Batatal-E. S. do Pinhal, 11; (3) Serra Negra-Mococa, 7; (4) Salto-Itararé, 13; (5) Avaré-Porto Epitácio, 17; (6) Itapira – S. J. do Rio Preto, 6; (7) Jacareí-Queluz, 13, e (8) Piraju-São Paulo, 13. Villa também conheceu o resto do Brasil inteiro.
Guarnieri era o mestre da ourivesaria, dos detalhes, e sua obra passou por todas as fases, do nacionalismo ao que hoje seria vanguarda. Minha filha Marta vai defender em Londres sua tese de PHD sobre as três sonatas para violoncelo do maestro. Trabalho cansativo, difícil pesquisa, pode-se sentir o sotaque interiorano com suas danças e ponteios – não o folguedo sulino de sapateado, mas o da viola caipira, ponteado pelos dedos polegar e indicador, principalmente.
Meu “elo perdido” é um conhecimento muito provável do jovem Guarnieri com a turma do também tieteense Cornélio Pires, estudioso e líder de um grupo de violeiros de música de raiz. Ainda estou em busca desse “elo”, e chegarei lá com ajuda de amigos. Do Villa, também, guardo alguma história muito pitoresca contada por meu pai, que com ele esteve um par de vezes, e a Da. Mindinha, segunda esposa, que conheci no Rio no início dos anos 1970. Nossos dois gênios, em duas medidas!