‘Figuras musicais…’ Aí­rton Pinto





Se tivesse de apontar um dos melhores músicos que o Brasil já teve, que aliasse capacidade técnica e um jeito inimitável de comandar, ele seria certamente Aírton Pinto. Como “spalla” (violino solista) da Osesp, era um músico seguro, um líder sem estripulias na condução de seu naipe ou da orquestra inteira. Como colega, era bem-humorado, sem nunca deixar de ser exigente no trabalho. Não se fazia “professor” das cordas, raramente dizia alguma coisa, mas quando o fazia era com precisão e sem estender-se em tediosas e desnecessárias exibições didáticas.

Toda essa segurança e cordialidade Aírton ganhou na mais britânica das cidades dos EUA, onde foi estudar e terminou ficando. No New England Conservatory, de Boston, uma das mais reputadas escolas americanas, logo se destacou, sendo admirado por seus mestres. Entre eles o que moldou seu refinado e encorpado som ao violino, o lendário Louis Krasner, que estreou os concertos de Alban Berg e Schönberg. (Uma das minhas maiores emoções musicais foi tocar o solo de contrabaixo no concerto para violino de Alban Berg, chamado “À Memória de um Anjo”, tendo Aírton como solista – e justo o de Berg, mestre de um de meus professores de composição, Joe Maneri. De uma forma ou de outra, entre Aírton, Krasner, Maneri e Berg, formara-se ali um elo quase místico para mim, quando o músico se transporta imaterialmente para um lado da obra que não se lê na partitura, apenas se sente).

Fui para Boston em 1977, e em 1978 ingressei no mesmo New England Conservatory onde Aírton estudara e foi depois professor! Uma de minhas grandes curiosidades era conhecer o famoso professor Krasner. Pelo pequeno vidro na porta de uma das salas, pude ver o incansável mestre algumas vezes em sua sala – janelinha, aliás, bastante conhecida e alvo de curiosidade geral. Ora, ali trabalhava um mito!

Talentosíssimo, Aírton logrou ser aprovado na Boston Symphony Orchestra, uma das melhores do mundo. Mas não foi apenas isso: como era exímio pianista, passou ao mesmo tempo na prova para piano de orquestra, e quando a partitura exigia, tornava-se pianista, o que também fazia com bom gosto refinado. Estava ali um músico completo, que às vezes se sentava ao piano com os alunos, e, outras, regendo o ensaio, preparava a orquestra para algum concerto, fazendo-se de solista. Com naturalidade, tocava o concerto de Grieg, algum de Beethoven ou Mozart, tirando-os do bolso na hora.

Era também um excelente camerista, e parte essencial de um bom grupo. Tive a grata honra de participar com ele de felizes momentos musicais junto a grandes músicos, como o violoncelista Antonio Del Claro, a pianista Daisy de Luca e o violista Marcelo Jaffé. Trabalhávamos na casa de Daisy o belo quinteto “A Truta” (“Die Forelle”), de Schubert, para uma apresentação. Ambiente mais descontraído não poderia haver.

Hoje, posso contar um episódio, com certeza Aírton não se importa de sabê-lo agora: tendo ele ido ao banheiro, Del Claro e Jaffé, este último um grande piadista, imitavam o sotaque carioquíssimo do violinista: “minhaix cordaix extão secaix”, disse Del Claro, “aix minhaix também”, emendou Jaffé. Aírton voltou do banheiro e, claro, percebeu alguma coisa estranha acontecendo. Fingiu que não se interessava e retomamos os ensaios sorrindo.

Outro fato curioso na minha convivência com Aírton foi quando ele, na qualidade de especialista, veio com sua colega de Unesp, a saudosa Martha Herr, para juntar-se à banca de exame da minha defesa de tese de doutorado, na USP. Soube que houve uma conversa entre os dois sobre o texto, na Unesp. O alvo seria a ausência de notas de rodapé – uma formalidade “must”, coisa mais recente no meio acadêmico. Eu, pessoalmente, preferia as notas de fim de texto aos “rodapés”, até brincava que eles eram uma espécie de “coitus interruptus” a cortar a fluidez da leitura para remeter a uma nota no fim da página, perturbando a atenção. Pois corri na biblioteca e fui atrás de dois nomes certos, o intocável Sábato Magaldi, professor emérito e depois acadêmico da ABL, falecido recentemente, e outro emérito e hoje também imortal da Academia, o grande Alfredo Bosi. Antes da defesa, tirei as teses – sem rodapés – dos dois grandes ícones da maleta e deixei-as sobre a mesa, como que distraidamente. E não é que funcionou? Nenhuma pergunta sobre pisos, batentes ou rodapés. A defesa foi longa, com questões de alto nível, um belo desafio.

Algum tempo depois, a Unesp mandou regularizar a situação de todos os professores, via concurso. Aí, coisas do destino, eu fui ser banca do Aírton. Simplesmente disse: Aírton, com seu conhecimento, vou aproveitar cada minuto de seu concurso. E pude perguntar tanta coisa sobre a técnica do arco, área de meu interesse principal, que tudo pareceu uma conversa amigável e proveitosa – mas como questionar Aírton? Era a minha vez!

No dia 17 de novembro de 2009, eu estava, depois de 27 anos sem lá voltar, em viagem a Boston, a convite. Estive no New England e na Boston Symphony, ouvi o nome do Aírton Pinto ao menos cinco vezes em um dia. À noite, recebi uma ligação do amigo Renato Bandel, exímio violista, que, sabendo de minha amizade com o Aírton, foi cauteloso na notícia: meu amigo, aos 73 e pleno de vigor, havia falecido de aneurisma cerebral. Assim mesmo, de repente. Uma pancada eu estar ali e ouvir a má notícia, depois de tantos anos: mais uma coincidência de nossas vidas. Mudou-se daqui, mas a amizade e a admiração continuam. Abraço e saudações terrenas, Aírton.