Eu juro que já vi o monstro!

Henrique Autran Dourado

Havia retornado dos EUA fazia pouco tempo. Após aqueles anos, estranhava muita coisa, voltava a um Brasil que reassumia o curso democrático: veio a eleição indireta Maluf x Tancredo, sendo o primeiro um simulacro para a continuidade sem farda de um grupo do regime; o segundo, um civil representando a esperança do povo brasileiro, mesmo que via indireta, após 20 anos de regime de força. Tancredo morreu antes de assumir, em circunstâncias que até hoje suscitam dúvidas sobre a diagnose, bem ao sabor das teorias conspiratórias. O vice, Sarney, tomou posse, e apesar de egresso da antiga Arena, era um civil à sombra do Tancredo. Mesmo com todo o frenesi despertado pela morte do eleito, o vislumbrar da redenção dos brasileiros e a proximidade de uma democracia de verdade, dizia-se que os militares “entregaram a rapadura com uma bomba-relógio dentro”: a inflação. Figueiredo, o último deles, deixou de bandeja cheia o comando do país para Sarney – 15,06% ao mês.

Ainda assustado, passei a compreender melhor a economia descontrolada do país e o mote “dinheiro parado, dinheiro perdido”. As contas a pagar eu levava, pela ordem do vencimento, em uma pasta de plástico com divisórias. Como não havia Internet e outras facilidades de hoje, ia ao banco saldar meus compromissos no dia certo, aos 45 minutos do segundo tempo. Havia uma espécie de aplicação financeira chamada “overnight” (“durante a noite”) que chegava a pagar 1% ao dia, percentual hoje raro de se ver em um mês em investimentos similares. Como esse 1% era cumulativo, em 30 dias chegava-se a uma cifra nominal considerável – se esquecida a inflação estratosférica. Resumindo, deixar para pagar as contas no vencimento trazia aquela sensação confortante de “lucro” que, mesmo irreal, parecia ganho diante da desvalorização diária. Com o cruzado, de 1986, o primeiro dos grandes planos fracassados, vieram os “fiscais do Sarney”.

Volta e meia eu proseava com o grande maestro Eleazar de Carvalho, um homem de inteligência raríssima aliada à perspicácia do nordestino alçado a cidadão do mundo, respeitadíssimo no meio musical. Certo dia, saindo do ensaio, fui com ele tomar um cafezinho perto do teatro, e, preocupado com aquela verdadeira montanha-russa de altos e baixos entre aplicações e inflação, resolvi perguntar o que ele achava daquilo tudo. Como sempre tinha uma frase lapidar na ponta da língua, respondeu: nunca vi um país fechar, mas pode sempre haver uma primeira vez. (Claro, era uma frase hiperbólica, um exagero usado na retórica e na escrita – no caso, até surreal). Uma franca confissão de desengano.

Fui para casa refletindo. Não, o país não fecharia – aliás, me confortava lembrar que se não havia “fechado” em 20 anos, não seria em mais um assalto do tropel galopante da inflação à sombra do retorno “lento, gradual e irrestrito” à democracia, como dizia o general Figueiredo, último presidente militar (1979-1985) – redenção que só aconteceria de verdade com a Constituinte de 1988, abrindo as janelas para o Estado Democrático, e a eleição direta de 1990, a primeira depois de 1961! Eleito Collor de Mello, malgrado o grande erro, e daí em diante com ele, seguimos em frente tropeçando em um novo tiro no escuro, o Plano Collor, confiscos bancários e o submundo do “tesoureiro” PC Farias, ironicamente ligado a um presidente que, dada sua suposta beata correição, era conhecido pela alcunha de “caçador de marajás”, e quase levou o Brasil a um estrago sem precedentes. Recebeu um país com hiperinflação para entregá-lo ao fim de 1992, após a renúncia, com 25,24% ao mês.

Veio um hiato, iniciado com Itamar em 1994, quando foi criada a URV (Unidade Real de Valor) e logo deu-se início à desindexação monetária. A inflação já estourava em 46,58% a.m., e em julho daquele ano, sob a liderança de Fernando Henrique no Ministério da Economia, veio uma nova moeda, em paridade com o dólar, chamada real (BRL). FHC assume a presidência em 1995, e consegue manter a estabilidade da moeda, seguido em boa parte por Lula, Dilma e Temer.

Em sua posse, Jair Bolsonaro recebeu uma inflação bastante razoável, 3,75% a.a. (IBGE). Porém, seria ingênuo debitar os números crescentes atuais apenas na conta do presidente. Dividem essa fatura a conjuntura internacional e a pandemia, que sufocam a atividade econômica. Coadjuvantes são uma gestão errática, o índice do IPCA, em 10,06% a.a., seguido pela saltitante taxa básica de juros (Selic), ora em 9,25%, remédio com efeitos colaterais no afã de conter a maldita inflação. Não há política econômica, apenas projeta-se reformas disso e daquilo. Paulo Guedes não decide sem o aval superior, e teve seu raio de ação desviado para a Casa Civil do ministro Ciro Nogueira, do chamado Centrão, que passa a ter o poder de brecar as decisões da pasta da economia, controlando-a.

Da mesma forma que seria ingênuo debitar a inflação apenas na conta do presidente, também seria fazê-lo ao ministro da Economia, perdido entre as teorias liberais dos chamados “Chicago Boys” do Milton Friedman e uma retórica vaga e oscilante. Trata-se de um conjunto de ações que, desorganizadas em uma gestão confusa “de per si”, ameaça perder régua e compasso entre volumosos gastos públicos: esbanjamentos, mordomias, orçamento secreto, benesses salariais para setores privilegiados com vistas à reeleição e outras sangrias aos cofres públicos. Seja quem for, o eleito que ocupar o cargo em 2023 precisará de um grande ministro e muito boa sorte.