Henrique Autran Dourado
Mudei-me para Boston (EUA), em 1977, e fiquei em um apartamento na cidade de Brighton, em New England, onde morava um saxofonista brasileiro, Zé Nogueira. Lá conheci o outro morador, o guitarrista argentino Victor Biglione, tão bom nos acordes e floreados quanto nas brincadeiras. Vendo-me estudar quase o tempo todo – “m’apparecchiava a sostener la guerra”, como Dante em La Divina Commedia -, deu-me um apelido: “erudíptero”. Fazia uma troça com a palavra erudito e algo pré-histórico, como o pássaro-dinossauro pterodáctilo. Não me importava, devolvia-lhe a brincadeira (incomodava-me a sombra pré-histórica, talvez). Nos EUA simplesmente não existe a expressão “música erudita” – como de resto na Inglaterra, na Alemanha, na França, na Itália e todos os demais; não me incomodava a pecha, coisa de Brasil, eu só não sabia o real significado, que viria a descobrir mais tarde.
A erudição é um bem, desenvolve a capacidade de investigar e analisar – é algo como sapiência, diz o dicionário. E lembra aqueles jovens de beca, toga e capelo da Universidade de Coimbra, Portugal, instituição fundada em 1290 e homologada em 1537. Mas em Portugal não existe a tal “música erudita”! Em italiano, é “erudizione”, em inglês, “erudition”, em espanhol “erudición”, em francês “érudition” e em alemão “gelehrsamkeit” – como palavras isoladas, nunca em uma expressão tal qual “música erudita”. Usa-se klassischemusik, classical music, musique classique e por aí vai. E nós, por que não música clássica? Estrangeiros esticam o pescoço e franzem as sobrancelhas quando ouvem alguém daqui dizer “música erudita” (foi esta a reação do maestro alemão Felix Krieger). Tal reflexão foi o Vitinho quem me despertou, via “erudíptero”, logo ele que estudava guitarra até no armário, com as escusas pela indiscrição.
No Rio de Janeiro praticamente inexiste a expressão “música erudita”. O comum é lermos “música clássica”, ou “de concerto”, contexto bem mais amplo e flexível – o que é natural, gêneros não ficam trancafiados em gavetas, eles se comunicam, se tocam, se trocam. Eu, pessoalmente, prefiro “de concerto”, e por onde estive foi o que levei. Linguagens se encontram, multiplicam-se. Razão de eu ter escrito um artigo para a Revista Concerto, de circulação nacional, intitulado “por que eu odeio música erudita”. Defendi que as origens da estranha expressão estariam no Rio, mais precisamente na Universidade do Brasil (hoje ENM da UFRJ) e na criação da OSN (Orquestra Sinfônica Nacional). No primeiro caso, para justificar a criação de cargos de professor de música na carreira universitária em uma época em que tal curso sequer existia (e, não havendo curso superior na área, não haveria, claro, diplomas para os candidatos ingressarem). Os músicos foram equiparados aos seus colegas “eruditos” de Direito na Universidade. No segundo caso, em 1960 – ano da criação da Orquestra Sinfônica Nacional -, criou-se no quadro de cargos e salários o título “professor de orquestra”, para que o músico pudesse receber vencimentos mais dignos, como os dos seus colegas universitários.
Essa discussão SP-RJ quase seria um jogo Fla-Flu entre paulistas (incluindo eu, mineiro!) e cariocas. Com alguma razão o grande pesquisador Flávio Silva escreveu na edição seguinte da revista que isso de “erudito” teria sido invenção paulista. Ora, que fosse, meio de longe, com Mário de Andrade, talvez, mas vale explicar melhor em que contexto ele teria inserido essa erudição, conforme alguns relatos, como os do estudioso Henrique L. Alves (em “Mário de Andrade”, Ed. Ibrasa). O grande educador paulistano defendia as raízes brasileiras da nossa música, bom pesquisador de folclore que era. Assim, achava que o compositor deveria fazer em sua obra uma “transposição erudita” dos elementos de raiz para sua composição. Isso foi só, Andrade ele mesmo nunca se referiu à música dos salões sinfônicos, de ópera ou recitais sob o epíteto de “música erudita”. Enfim, foram dois artigos nossos com intervalo de um mês, colóquio que poderia ter sido espichado para o futuro, não fosse o inesperado falecimento do pesquisador Flávio Silva, em 8/10/2019.
“Erudíptero”, ideia do Vitinho (apelido do Victor Biglione) ressurgiu em minha cabeça há dias como uma anedota, após ler um trecho sobre o Mário de Andrade na tese de PhD da minha filha Marta, que vive em Londres, cujo objeto de estudo foi o tieteense Camargo Guarnieri, ex-aluno – como se sabe, muito bem aplicado – de Andrade (vide os choros, ponteios e modinhas do compositor). Passadas décadas, a brincadeira do Victor passou a fazer mais sentido: “música erudita” seria um antigo animal paquidérmico, pura ironia. Quanto ao saudoso Flávio Silva, hoje concordo que em parte lhe assistia alguma razão. Enfim, concluo agora, “nada como a tintura do tempo”, como diz um provérbio inglês, pois, divergências esclarecidas, poderíamos discutir de forma mais saudável. Aos que abusam de “música erudita”, um alerta: o rótulo não agrega público: usará ele o povo um dicionário para saber-lhe o significado, se isso pesar na decisão de ir ou não ao concerto? Zé Povino só gosta daquilo que ele “re”-conhece, como disse McLuhan – e se vê excluído dessa “música erudita”. “O artista só tem que dar, pros elementos já existentes, uma transposição erudita que faça da música popular música artística”, disse Mário de Andrade. E foi só isso aí.
No dia 5 de março comemorou-se o “Dia Nacional da Música Clássica” (Decreto de 13/01/2009).