O estigma de artista romântico sempre perseguiu o músico, independentemente da época em que tenha vivido. A imagem estereotipada do compositor ou instrumentista solitário, maluco e quase tísico povoa a imaginação geral. Talvez por causa da loucura do alemão Robert Schumann (séc. 19), da surdez, boemia e mau-humor de Beethoven (1770-1827), o final precoce e abandonado do gênio Mozart (séc. 18) ou a cólera de Tchaikovsky (séc. 19), que para completar a sina era gay, e no regime da Rússia czarista! Tristes finais também tiveram Bach, Händel e Schütz, que morreram cegos, Chopin e Paganini, tuberculosos, e Mussorgsky, que “nadava” na bebida.
Paganini, aliás, além de bêbado contumaz era um jogador compulsivo. No começo da carreira chegou a deixar seu violino em uma casa de penhores para alugar um fraque, mas foi jogar e, claro, perdeu tudo o que pegara emprestado. Pediu a um amigo um violino e fraque, mas com o dinheiro do cachê do recital voltou à jogatina e perdeu tudo.
Essas imagens não diferem muito daquelas do nosso Noel Rosa (1910-1937), 350 músicas, morto de tuberculose aos 26 anos. Protagonista, aliás, além de extenso anedotário, de um riquíssimo embate musical com o sambista Geraldo Pereira, assassinado com um soco na barriga em um bar. Passa, também, pela imortal Billie Holiday, rainha do blues, viciada em heroína, bem como Jimi Hendrix, o guitarrista-mito do rock que solava seu instrumento até com a língua e volta e meia ateava fogo na guitarra, sobre o palco, sem falar na recente Amy Winehouse. Todos vítimas, de um jeito ou de outro, de overdose de entorpecentes (ou sufocado pelo próprio vômito, como Hendrix, após os homéricos excessos). Somem-se ainda o saxofonista John Coltrane, os nossos Raul Seixas, “maluco beleza”, e a divina Elis Regina, a “Pimentinha”. Steve Tyler, da banda Aerosmith, contou que a droga era estimulada pelos próprios empresários, em busca de maior impacto de seus artistas em cena. Disse também que, enquanto os músicos ficavam na cama, entorpecidos pelos excessos, eram roubados pelos próprios agentes. Sem falar na praga dos novos tempos, a Aids, que levou Freddie Mercury, Cazuza e Renato Russo, do grupo Legião Urbana.
O baixista Sid Vicious, do grupo inglês de “punk-rock” Sex Pistols, morreu quase adolescente, aos 21 anos. Provocador, volta e meia apanhava de alguém mais exaltado, como aconteceu nos EUA, quando teve a cara quebrada por uma mulher ensandecida – mas prosseguiu o show com sangue escorrendo pelo nariz. Seu vocalista bradava ao microfone “é um circo vivo!” Certo dia, ao acordar e sem se lembrar da noite anterior, Sid deparou-se com o corpo de sua companheira Nancy coberto de sangue. Como se não bastasse, Sid foi encontrado morto por overdose. A mãe dele mandou cremar-lhe o corpo, mas escorregou e caiu com a caixa em que levava as cinzas num dos saguões do aeroporto de Heathrow, em Londres, deixando escapar parte dos restos mortais pelas frestas do sistema de calefação. Sid foi “colega de escola” de Kurt Cobain, do grupo Nirvana – que tinha mais de calvário do que da libertação budista do título: suicidou-se com um tiro na cabeça aos 27 anos.
Ilustrando o retrato do músico sofrido, a violoncelista Jacqueline Du Pré foi acometida de esclerose múltipla, doença degenerativa que a levou à morte em 1987, no esplendor de uma carreira sem precedentes. O célebre violinista israelense Itzhak Perlman quando criança queria ser jogador de futebol. Mas o destino lhe fez vítima da poliomielite, teve de passar às muletas e cadeira de rodas, decidindo-se pelo violino, do qual é um dos gigantes vivos. O guapo cantor Julio Iglesias queria ser goleiro do Real Madrid, até que aos 20 anos sofreu um acidente de automóvel e quase perdeu os movimentos. Pois foi no hospital que ele começou a cantar para outros enfermos e enfermeiras, tocando um violão. Já deve ter batido a casa dos 250 milhões de discos. Nasceram cegos Stevie Wonder, Ray Charles e Andrea Bocelli. Um inovador da harmonia jazzística, Django Reinhardt, com defeitos congênitos na mão, criou seu sistema pessoal na condução harmônica da guitarra. (Todos esses, ressalto, souberam explorar suas virtudes e até mesmo seus defeitos pela melhor música).
Uma vez popularizada essa pecha de loucos e judiados dos músicos, pesquisadores passaram a ter seu interesse despertado. No 1° Encontro Latino-Americano de Trombones, em 1999, alguns deles estiveram presentes, e ao menos duas palestras versaram sobre o tema: “O Trombone e suas Conexões com a Psiquiatria”, com o doutor Sérgio F. Rocha, e “As Síndromes do Trombone”, pela doutora Dorotéa Malheiros.
Aliada a essa fama de boêmios, doentes e marginalizados frequentemente emprestada aos músicos de forma genérica (são muito poucos entre a maioria), existe uma outra faceta do carma que é passar inúmeras horas do dia sozinho, praticando ou escrevendo, dedicando-se com afinco ao aperfeiçoamento técnico, ensaiando exaustivamente para que as notas que escrever ou extrair de seus instrumentos afaguem o coração de seus ouvintes. À parte um tipo menos louvável de péssima estrela que, frustrado, vê as pessoas na plateia mais interessadas no “mauricinho” ou “patricinha” ao lado nos shows.
(Alerto que este é um retrato de tristes exceções que não devem ser seguidas: a demência é triste, e álcool e drogas atrapalham os estudos. Salve os que servem de estímulo aos que possuem defeitos físicos ou se veem privados de algum sentido ou movimentos. Grandes exemplos!)